Na Pensão Alto Paraná de meus pais ficavam muitos peões, recém chegados ao paraíso obreiro que era o Norte do Paraná nos anos 1950, com tanta mata a derrubar e cafezais a plantar. Eles serviam para abrir fazendas, onde depois seriam trocados por colonos com suas famílias residentes, mas ainda tinham muito serviço enquanto se abriam novas glebas. Eram mão-de-obra bruta, com força própria para serviços pesados, porém com certa expertise, como, na derrubada de mata, cortar uma árvore de modo a seu tombo atingir outras já meio cortadas para caírem como dominós.

Aqueles homens brutos tinham também suas delicadezas, por exemplo: em vez de pegar pires para a sobremesa, usar o prato lambido com pão e virado de boca para baixo, assim deixando menos louça para lavar. Alguns agachavam para falar comigo e eu me achava grande. Apertavam minha mão que se perdia entre tantos calos.

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. | Foto: Arquivo familiar

Na cintura, cintos largos com grandes fivelas brilhantes, e brilhantina nos cabelos. Uns tinham dentes de ouro, e um se orgulhava de ter trocado os dois dentões frontais por postiços mas de ouro, repetia ele, de ouro. Chegavam suados e fedidos, com cabelos avermelhados de poeira, daí tomavam banho, vestiam as roupas amassadas da mala ou do saco, trocavam as botinas por sapatos e saíam para o fim de semana em Londrina, levando nos bolsos dinheiro suado de semanas na roça.

E caíam nas mãos lisas e finas de jogadores, desde baralho a vermelhinha, cafetões e prostitutas, vendedores de loterias e joias, até muitas “joias de família recebidas de herança”... Também lhes ofereciam terras com escrituras já ali na mão, enquanto eles bebiam de bar em bar até ficarem nas mãos de Deus, como dizia minha mãe. Alguns chegavam na sexta com bolsos cheios, e na segunda saíam sem pagar a pensão, deixando a mala de penhor num quartinho só para malas.

Mas outros peões deixavam seu dinheiro do cofre da pensão; na foto, entre meu pai na mesinha-escrivaninha e o agenciador Zé Gomes de chapéu. Uma noite, menino eu mal tinha deitado, ouvi vozerio, fui ver, era um peão chegado naquela tarde mesmo e já bêbado de não parar em pé, querendo de volta seu dinheiro. No dia seguinte, sábado de ressaca, contava que tinha sido assaltado numa rua escura. Um dia depois, pegando caminhão para a roça, ao subir na carroceria já foi contando que tinha saudade de machado, fazia um mês que só gastava dinheiro farreando...

Minha atração por histórias, além da vocação estar no sangue, decerto foi atiçada pelos peões, acocorados proseando em redor da fogueira do tambor de sabão, contando histórias trazidas de outras regiões do Brasil. Lutas e heróis, aventuras e desventuras, assombrações e sertões. Os peões foram minha primeira enciclopédia, fonte de histórias antes até dos gibis e do cinema. E tatuaram a Pensão Alto Paraná no meu coração.