Quando foi feito o Cristo Rei, em Cornélio Procópio, deixaram aberta uma portinhola traseira, e a molecada logo descobriu que por ali se podia penetrar na enorme estátua, para subir pela cruz de concreto que a sustenta. Lá em cima, no final da escadinha de ferros na sua coluna vertical, outra portinhola se abria acima da grande cabeça, mirante para a cidade. Ali peguei gosto pela aventura de subir às alturas.

Então o pai foi visitar a mãe, desquitados e ainda lançando gritos, batendo portas e vertendo mágoas. Peguei minha companheira silenciosa, a bicicleta, e pedalei até uma pedreira desativada no fundo do Colégio Castro Alves, onde matadores de aulas iam jogar batalha-naval, alguns se gabavam de ter escalado até o alto da pedreira.

- Para esquecer as pedras do peito, encarei o desafio, escalando pelas arestas do paredão de grandes pedras lascadas. Não era fácil nem difícil achar um caminho, porém tão tortuoso quanto enganoso, pois me levou só até o meio da pedreira, onde me vi de repente entre a tardinha e a noitinha. Luzes acenderam na vizinhança, perto de se ver as pessoas mas longe de grito não alcançar.

- E anoiteceu de vez, não conseguia mais ver a bicicleta lá embaixo, aninhado numa pequena plataforma de pedra meio inclinada, em volta escuridão. Apalpando arestas aqui e ali, enfiando os dedos em reentrâncias, tentei descer, escorregando e quase caindo.

- Então gritei. Socorro, aqui, socorro, e nada, só os grilos no silêncio e algum latido distante. Pedi ajuda a Deus, que pela primeira vez deixou de ser uma palavra cantada nas procissões e repetida nas rezas da igreja, seria então meu salvador. Mas Deus continuou na sua como sempre, e fiquei ouvindo o coração bombar, pensando que, quando o sono me derrubasse, me quebraria todo caindo talvez sobre a bicicleta.

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. | Foto: Reprodução

- Devo ter ficado ali algumas horas, até a lua levantar e o luar revelar as tantas facetas angulosas da pedreira. Então lembrei da mãe, dizendo que na vida ou a gente faz o que deve ou passa a dever. E resolvi que eu não deveria voltar ferido para a casa em guerra. Virei de barriga para a pedreira, como as aranhas que via subindo paredes, e voltei a tentear as rochas. Um dedo aqui, um dedo ali, apoio lá para um pé, depois outro, fui descendo a suar frio.

- De repente, procurando mais um apoio para o pé, toquei no chão! Que alívio plantar os pés, que vitória ficar em pé! Montei na minha companheira silenciosa e pedalei até em casa, temeroso de bronca pela hora tardia. Mas o pai já tinha ido, a mãe na varanda olhava a noite com olhos vazios. Tudo bem, meu filho? Tudo bem, falei, estranhando ela não reparar nas roupas sujas e arranhadas pela pedreira.

- Fui deitar logo, ainda sentindo em mim cheiro de pedra mas, enfim, aliviado das pedras no peito. Pois agora eu sabia que, fosse como fosse dali por diante, eu tinha vencido uma pedreira maior, eu podia me salvar, e de manhã levantei pronto para pedalar.