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“A memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos”, conforme Adélia Prado – e eu assino embaixo com o canivete que Vô Manoel deu dizendo que, como ferramenta, podia durar muito tempo, como brinquedo ia durar pouco. E de vez em quando ainda vejo o velho canivete, ele vive na minha caixa de pesca.

A memória é um lago escuro onde a gente pesca lembranças, quanto mais antigas melhor. Quanto mais vivemos, mesmo vazando os momentos que não se querem lembrados ou se deixam esquecer, é uma vantagem regressiva da velhice que o lago das lembranças mais se enche.

O momento em que, na piscina, o menino sobe na baliza e mergulha de cabeça com as mãos nas coxas. É uma pequena aventura, nunca mergulhou sem as mãos adiante, e o que consegue é bater a testa no fundo da piscina. Levanta tonto e alguém aponta sua testa sangrando, ele começa a aprender que aventuras tem riscos.

De repente começa a ventar forte, chacoalhando os galhos da mangueira, e ele se agarra nos galhos finos onde subiu para pegar aquela manga, não por ser maior ou mais bonita mas por estar mais alta. Ainda está decidindo se vai descascar a dentadas ou só dar mordidinha no bico pra apertar chupando o caldinho – quando quase cai com outras ventadas, até deixa cair a manga para se agarrar mais. Mas o vento resolve ventar mais, como se querendo lhe jogar longe, e o coração começa a bater na boca. Tenta descer levando um pé a uma forquilha mas o vento não deixa, puxando um braço para cá num galho, outro braço para lá noutro galho, então se agarra até com as pernas. Aí Vó Tiana grita lá de baixo: desce daí, menino, desce já, não tá vendo que tá ventando?! E, sem saber como, ele desce e, enquanto caem os primeiros pingões de chuva, entra na casa com cheiro do fogão a lenha, cheiro de proteção e gostosura, no forno sempre tem batata-doce.

Depois vem o momento em que, pela primeira vez, o rapazola pega uma onda no ponto certo, quando ela está curvando para quebrar, começando a espumar na crista, de modo que, quando ele se lança em direção à praia, ela lhe dá uma lambada quebrando nas costas e daí, com os braços esticados para a frente, vai sendo levado para a praia como se o corpo tivesse um motor roncando nos ouvidos. E já está sem fôlego quando as mãos tocam a areia, e se levanta vitorioso, pronto para aplausos, mas logo vê que ninguém nem olha, ninguém viu, está sozinho e é só um inesquecível momento seu.

Como o momento em que levanta o primeiro papagaio, sentindo-se tão alto! Ou atira a lança de cabo de vassoura num lagarto tomando sol numa tora, na Serraria Mortari onde hoje é supermercado, e não acerta, o lagarto continua imóvel como se até por deboche.

Então ele pega na mão da primeira namorada. Beija espantado dela enfiar a língua em sua boca: porque ninguém nunca falou disso nem na vida nem no cinema?

É pescaria em que não precisa pescar, as lembranças saltam do lago escuro como estrelas, quanto mais antigas mais brilhantes.