Em 1982 em Berlim, o Checkpoint Charlie era o fiofó da Guerra Fria, passagem super-policiada entre as Alemanhas Ocidental capitalista e Oriental comunista. Passei por lá com grupo de escritores, já ex-comunista enquanto outros ainda reverenciavam o socialismo e suas ditaduras militares, embora lamentassem a ditadura militar no Brasil...

Imagem ilustrativa da imagem O desfile e o silêncio

Luís Fernando Veríssimo conta em seu livro Crônicas da Vida Pública: “Em plena fila (de ônibus) no Check-Point Charlie, o contista paranaense Domingos Pellegrini disse que precisava fazer xixi. Saltou do ônibus e entrou num bar”. Esclareça-se: isso foi na volta; na ida, tinha entrado no ônibus uma tenentona fardada e de botas, que nos levou a apreciar grandes parques, estátuas heroicas, um mercado com prateleiras meio vazias...

Mas a tenente disse que ali tinha tudo para se viver bem, então perguntei se o pessoal do Partido e do governo também comprava ali. Não, ela respondeu, tinham outro tipo de mercado.

Deparamos com a imensa Avenida Karl Marx, toda simétrica com seus prédios monumentais iguaizinhos de um lado e de outro. Projetada para ser símbolo da arquitetura comunista, a avenidona expressava a pesada frieza do regime – e havia bandeiras vermelhas em muitas sacadas, perguntei por que.

A tenente explicou que poucos dias antes, em feriado nacional, por ali passara um grande desfile, e os moradores ainda não tinham recolhido suas bandeiras. Perguntei se ali morava muita gente do Partido e do governo. Sim, ela respondeu seca. Depois viramos numa rua de velhos prédios com só uma sacada com bandeira. Perguntei se podia supor que ali morava pouca gente do Partido e do governo, e ela não respondeu. Repeti a pergunta, ela resmungou que sim.

Então voltamos ao check-point para uma fila de muitos ônibus. Acenei para um sujeito em janela, ele brindou, aí foi que inventei o xixi urgente. A tenente não quis deixar, falei que não tinha culpa se ônibus comunista não tinha sanitário, ela deixou.

Fui, bebi um schnaps oferecido pelo já amigo da janela, num restaurante triste de operários cansados, e perguntei em mal Inglês se ele gostava do paraíso comunista. Ele piscou: "What paradise? (que paraíso?)". Aí, contei umas lorotas, cantei um samba e tomei mais umas que ofereceram. Depois, Veríssimo conta: “Quando Domingos voltou, uma janela do restaurante se abriu e vários rostos surgiram sorrindo para ele. Um homem ofereceu, com um gesto, um schnaps. Pellegrini agradeceu, o homem da janela ergueu o copo num brinde e bebeu. Ponto para a coexistência pacífica. Pelo menos entre Berlim Oriental e o Paraná”.

Todos criam em muito futuro para aquele regime que parecia tão sólido, com seus esplêndidos desfiles, mas desmoronaria só sete anos depois. E quem derrubou foram aqueles operários na janela, gente trabalhadora e descrente de paraísos na terra, em imensas marchas com crianças, cadeirantes e esperança. Aqui, hoje, só quem não crê na ordem pública tem feito marchas e concentrações na pandemia. O povo ordeiro e democrata espera, por enquanto, em silêncio.