Em abril de 1964, meu pai estava entusiasmado com a Revolução Redentora, falando ao nonno José:

- Vai acabar a roubalheira, pai, vai ser a salvação do Brasil!

Para mim, a roubalheira era um vilão muito difuso, rapazola eu via que o Brasil precisava ser salvo mas do imperialismo ianque. O nonno porém só ouviu, ouviu, pitou e soltou com fumaça:

- Mas quem é que está precisando ser salvo? – e uma baforada depois: – Nós aqui vamos continuar trabalhando!

Dois anos depois, o jovem anti-ianque se tornaria comunista militante, contaminado pelo vírus ideológico no colégio.

Mais alguns anos (o tempo também é difuso na evolução ideológica), seu comunismo foi corroído pelo anarquismo, que porém passou rápido.

Aos trinta e cinco anos, militando pela Anistia, o ex-comunista ajudaria a trazer do exílio amigos ainda comunistas, crentes na velha utopia que desculpava tantas barbaridades nos países com ditadura “do proletariado”.

Jânio Quadros
Jânio Quadros | Foto: UH/Folhapress

Então passei a me espantar como, para defender sua ideologia, negavam-se a ver fatos ou a ouvir quem pensava diferente. Vi como a ideologia transforma cérebros em múmias mentais, mas não são múmias mortas, sempre prontas a defender com unhas e mentes sua visão para-o-mundo.

A polarização atual tem nas suas origens duas tão cristalizadas quanto enferrujadas visões para-o-mundo, para que tudo seja como querem uns e outros à esquerda ou à direita - e pronto, tudo estará resolvido.

Esses dois fantasmas rondam o mundo, Esquerdismo e Direitismo, que a social-democracia nem liquidou nem soube ser alternativa.

Enquanto isso, dei por esgotada minha cota de salvadores da pátria. Em velhas revistas caseiras, desde menino acompanhei Getúlio e Jânio, um querendo salvar os trabalhadores do Brasil, outro querendo varrer a corrupção. Depois Collor ia salvar o Brasil dos marajás. Depois tivemos FHC, que não se dizia salvador mas fazia pose. Depois Lula, com direito a Dilma, e deu no que deu. Todos eleitos democraticamente, que também foi como Hitler chegou ao poder para depois fazer o que fez.

Passei a concordar com Churchill: a democracia é a pior forma de governo com exceção de todas as outras. Sou democrata por amar a democracia como construção permanente que pode ir não só para a frente, também para os lados, evoluindo mesmo quando parece retroceder.

O amor à democracia aclara a mente, a paixão pela ideologia cega. A ideologia sempre quer ver pela gente, ou melhor, quer que a gente veja só o que ela quer. Como cada ideologia sempre tem um salvador da pátria como patrono, seus seguidores não vêem seus defeitos ou vêem como virtudes.

E compensam toda essa cegueira com um futuro radiante, em nome de um Novo Mundo, um Novo Homem, um Novo Brasil... Por isso ando sempre com meus óculos anti-ídolos, que são invisíveis, ninguém vê mas com eles vejo com os dois olhos, o esquerdo e o direito. E continuo com a visão do nonno José: enquanto direita e esquerda se batem com paixão, a pátria é sustentava pelos que continuam trabalhando com amor.