Num mundo de celulares, o que um velho orelhão terá a dizer?
Hoje, quem tem celular tem o mundo nas mãos, e o orelhão, além de telefone, era só um guarda-chuva onde mal cabiam dois
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sábado, 15 de fevereiro de 2025
Hoje, quem tem celular tem o mundo nas mãos, e o orelhão, além de telefone, era só um guarda-chuva onde mal cabiam dois
Domingos Pellegrini

Pego o fone de um velho orelhão sobrevivente e temos a seguinte conversa.
- Você funciona ainda?
- Não, e nem sei porque ainda estou aqui.
- Talvez pra nos lembrar de quanto vocês orelhões foram importantes. Lembro da Sercomtel, a empresa municipal de telefonia em Londrina, anunciando com orgulho orelhão na reserva indígena e...
- Nem me lembre... Fazer o que, ouvindo aprendi que novas tecnologias são implacáveis. Sei que hoje quem tem celular tem o mundo nas mãos, e o orelhão, além de telefone, era só um guarda-chuva onde mal cabiam dois.
- Não se amargure, você pode se orgulhar de ter sido inventado por uma arquiteta brasileira de nascença chinesa, Chi Ming Silveira, que te deu forma ovóide porque a casca do ovo tem a melhor acústica.
- Eu pensava que orelhão tem forma de orelha, não?
- Não, a Chi descobriu que a curvatura da cúpula do ovo desvia a maior parte dos ruídos para fora, e os que entram convergem para abaixo do queixo do usuário. Você é uma preciosidade de eficiência com simplicidade!
- Embora obsoleto.
- Mas não se culpe, a evolução é inevitável.
- Como a morte, né.
- Desamargue, sinta é orgulho de ter servido a tanta gente naquele tempo em que só casas e empresas tinham telefones, aí chegaram os orelhões, a democracia na telefonia.
- Hoje dizem telecomunicações...
- E a democracia só avança, hoje até criancinha tem telefone! Mas o machado de ferro não brigou com o machado de pedra, pois o de ferro aprendeu ser machado com o de pedra. Menino ainda vi os telefonões caseiros antigos, escuros e pesados, e era preciso sempre falar antes com telefonista, pra informar o número pra ligação, que podia demorar se por exemplo uma tempestade derrubasse postes. Mas dá saudade, namorei muito naqueles telefonões.
- Mas em orelhões pouco se namorava.
- Desculpe, mas voltemos à evolução. Antes do celular, a gente queria achar um endereço, era um sofrimento. Frentista de posto cansava de atender gente procurando rua, mas hoje você fala o endereço e deixa por conta do espertinho, pois smartphone é traduzível por “fone esperto”. Que não só escuta e fala apenas, faz compras e vendas, pesquisa desde preços até ciências, é enciclopédia e calculadora, calendário, agenda, correio de voz e imagem, buscador de endereços no mundo, caixa de música streaming, tudo na palma da mão! Você devia se orgulhar dessa evolução!
- Mas celular não evoluiu dos telefones, celular surgiu dos satélites.
É vero, reconheço, e o orelhão silencia. Pra consolar, conto que celular foi proibido nas escolas, ele silencia. Conto que celular vicia, ele silencia. Conto que o uso em excesso de celular pode afetar o cérebro, a coluna e até a alma, e ele apenas retruca que é assim mesmo:
- Todo excesso faz mal. Tinha quem fizesse de orelhão seu escritório, usando tanto que prejudicava os outros.
Suspira e diz que está conformado, embora ainda tenha um sonho:
- Queria uma pintura nova, uma reforma boa e, arrancado com carinho sem machucar o pezinho, queria ir para um museu.

