Na pandemia, leio a autobiografia "Memórias, Sonhos e Reflexões", em que Jung conta como retirou dos sonhos a armadura sexual de Freud, para quem tudo tinha origem no sexo e pelo sexo tudo se explicava no mundo da mente. Já Jung viu as conexões dos sonhos com a riqueza do inconsciente coletivo que todos herdamos. E, nas suas memórias, conta como decifrou alguns de seus sonhos mais intrincados e simbólicos, mostrando como interpretar os sonhos pode ser revelador para nossa vida.

Já para Osho, sonhos são apenas diversão da mente, na maioria devem ser jogados no lixo da memória. Prefiro ficar entre os dois, descartando muitos sonhos mas reconhecendo os sonhos funcionais, como chamo, aqueles que nos falam fundo ou indicam caminhos, opções, perigos.

Como um sonho de Jung, no tempo em que esperava e temia romper com Freud, até porque o discípulo via mais que o mestre. No sonho, depois de percorrer todas as partes de uma velha mansão, no segundo andar Jung abre uma última porta que dá para o vazio. E ele interpreta: tinha de deixar a velha casa, o sistema de Freud, para criar seu próprio sistema psicológico, uma nova casa.

Tive alguns sonhos funcionais assim. Num deles, descasado, descrente de ideologias depois da paixão comunista e do delírio anarquista, depois de casamento desfeito, em 1984, viajara à Europa abrindo horizontes na cabeça. E, de volta, comecei a sonhar que voava.

Voava batendo os braços sem esforço nem pressa, à altura de ver a própria sombra a bracejar no asfalto, reconhecendo aqui e ali gente a me acenar. Pesquisei o significado desse sonho e era óbvio: eu queria sair da terra em que vivia, viver alhures. Aí, resolvi viver em São Paulo, até para responder a quantos me perguntavam porque não ia viver em São Paulo.

E meus três anos paulistanos seriam uma bela e crescente fatia de meu bolo da vida, porém interrompida porque sonhei com o jaboticabal.

Menino, com outros meninos tinha surrupiado jaboticabas de uma chácara, até o dono atirar com cartuchos de sal. Cada descarga batia na folharada como uma grande vassourada que, se pegasse na gente, arderia de doer.

Já nos sonhos em São Paulo, eu penetrava pela cerca de arame farpado da chácara do jaboticabal, como quando menino. No pé da primeira jaboticabeira, ouvia o chacareiro gritar – Ô molecada danada, lá vai bala! – e, depois do primeiro estampido, meu primeiro filho, então, menino também, caía alto de uma jaboticabeira, ficava no chão.

Então, a filha menina aparecia correndo para mim - mas era derrubada por um segundo disparo. Depois vinha correndo o menorzinho, tropeçando e correndo e, antes do terceiro tiro, eu acordava com o coração bombando.

Na terceira vez em que sonhei com o jaboticabal, voltei para meus filhos e para a Terra Vermelha, descobrindo o gosto da própria natureza, ouvindo claro a voz do coração e sentindo a força das raízes. Descobri que não só não queria viver em São Paulo como queria viver sempre na cidade onde nasci. Um sonho me levou para outra vida, outro sonho me trouxe para uma nova vida.