Era um fusca 65 que poderia contar muitas histórias. Era na ditadura, tempo de exílios, e ele foi exilado em garagem doméstica. Porque era parte de herança e, enquanto não se resolvia que bens ficariam com quem, ele ficaria na garagem.

Ficou lá quatro anos, como uma criançona de lata que era preciso botar pra funcionar a cada mês, também calibrando os pneus com bomba manual, pois não devia sair da garagem nem pra isso, pois vai que acontecesse um acidente, pronto, quem ia querer ficar com um fusca batido?

Empoeirando na garagem, parecia um velho fusca o carro popular idealizado por Hitler para ser símbolo de uma nova Alemanha (aquela que iria durar mil anos e o fusca duraria muito mais...).

Mas um dia o nó da herança desatou-se e o fusca passou para minhas mãos, logo se mostrando tão econômico no tanque quanto ágil nas manobras, um grande carrinho. Então fomos pra praia de fusca, e lá fui mostrar ao filho menino como pegar jacaré, o avô do surf - quando se pega a onda nas costas, sem prancha e com os braços esticados, para ser levado até mesmo à prainha. E foi assim que perdi uma lente de contato, a única, entre tantas perdidas, que nem cheguei a procurar...

Mas, insistindo em mostrar minha perícia jacarezeira, voltei às ondas e... perdi a segunda lente de contato. Na volta pra casa, dirigindo o fusca, até daria pra enxergar bem sem as lentes, pois ainda era pouca miopia, mas choveu. Dirigi com Deus como co-piloto que não deixou acontecer nada, e assim passei do afeto ao amor pelo fusca.

Num carnaval, fantasiado de mulher no Bloco do Pirulito, no Bar do Tio Mário emprestei o fusca pra outro ir buscar a mulher, e ele devolveria a chave deixando o fusca estacionado na rua. E estávamos ali no bar, antes do bloco sair pra ronda pelos bailes nos clubes, quando o fusca passou pela rua – e, num raro minuto sem trânsito, atravessou a avenida dupla onde a rua embicava, daí na contramão fazendo uma graciosa curva, para subir numa calçada beijando uma árvore.

Tinha ficado sem freio de mão puxado, e um barbudo tinha encostado nele pra ajeitar o sutiã, daí ele desceu a rua a nos surpreender, afinal ficando sem sequer um arranhão e então apelidei de Fux, o superfusca.

Com ele viajamos mais e tantas mudanças vimos, como o estacionamento da UEL no começo, os prédios como ilhas de concreto num mar de carro, professores encapando os pés pra enfrentar o barreiro.

Eu lavava o fusca com afeto, mas um dia por preguiça não botei na garagem (quem iria roubar um fusca?) e ele foi levado. Fiz boletim de ocorrência, mas ele sumiu mesmo. Até que alguém me liga dizendo que o fusca registrado em meu nome tinha se desastrado “com perda total”, e o condutor precisava “por questões legais” ter o fusca em seu nome, portanto eu fizesse preço. Pedi o preço de fusca em ótimo estado e o comprador não pechinchou, assim o fusca trombado me deixando triste, mas feliz.

Agora os fuscas viraram símbolos de um saudoso tempo e preciosidade de colecionadores. E, quando vejo algum, sempre fico encafifado a pensar que já pensei fossem os fuscas findar, mas não, parece que sempre veremos esses fenômenos chamados fuscas. Ou Fuscas.