Quem terá escrito os seguintes parágrafos?

“Os líderes e os heróis são vazios, tolos, prepotentes, odiosos e maléficos. Mentem quando se dizem intérpretes do povo e pretendem falar em seu nome, pois a bandeira que empunham é a da morte, para subsistir necessitam da opressão e da violência.

“Em qualquer posição que assumam, em qualquer sistema de governo ou tipo de sociedade, o líder e o herói exigirão obediência e culto. Não podem suportar a liberdade, a invenção e o sonho, têm horror ao indivíduo, colocam-se acima do povo, o mundo que constroem é feio e triste.

“Assim tem sido sempre, quem consegue distinguir entre o herói e o assassino, entre o líder e o tirano?

“O humanismo nasce daqueles que não possuem carisma e não detém qualquer parcela de poder. Se pensamos em Pasteur e em Chaplin, como admirar e estimar Napoleão?”

O autor de tais linhas é Jorge Amado, que entretanto endeusou o líder comunista Luiz Carlos Prestes no romance O Cavaleiro da Esperança, em 1942. Depois o autor de sofridos romances de denúncias e lutas sociais mudaria, ganhando essa ojeriza de líderes e passando a criar personagens picarescos como Gabriela e Dona Flor. Decerto essa mudança muito se deu depois do líder soviético Nikita Krushev em 1956 denunciar os tantos crimes de Stalin, o paizão ideológico dos velhos comunistas.

Stalin
Stalin | Foto: Reprodução

Os velhos comunistas, em partidos oficiais ou clandestinos em todo o mundo, idolatraram tanto e de tal forma veneraram Stalin que, quando seus crimes foram denunciados, custaram acreditar. Houve até os que preferiram não acreditar, relegando aquilo a mentiras dos inimigos do povo, fossem eles quem fossem – como hoje vemos também cegueiras idênticas à esquerda e à direita.

Houve até os que preferiram não acreditar que Stalin, entre outros crimes, tivesse mandado matar tanta gente, inclusive milhares de oficiais militares e centenas de militantes do próprio Partido Comunista. Afinal, acreditar nisso seria se verem os idólatras como comungantes de tal genocídio. Hoje também vemos gente que, diante da derrocada de seus ídolos – à direita e à esquerda – recusam-se a crer nos próprios olhos e julgar pela própria cabeça.

Para apoiar a idolatria, o militante tem as muletas da ideologia. Se qualquer fato ou argumento ameaça abalar sua crença no carisma e sua fé no fracasso evidente, o militante se apoia na ideologia. À esquerda, a ideologia promete conquistar um lindo futuro que nunca existirá pois onde pôde nunca deu certo. À direita, a ideologia promete restaurar um belo passado que nunca foi belo. O militante se desculpa com a utopia do futuro, enquanto os fins justificam os meios, ou com a nostalgia do passado, visto só com virtudes.

Voltemos a mais um trecho de O Menino Grapiúna, memórias de Jorge Amado:

“Não serão as ideologias por acaso a desgraça de nosso tempo? Estará o pensamento criador submergido, afogado pelas teorias, pelos conceitos dogmáticos, o avanço do homem travado por regras imutáveis?

“Sonho com uma revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente, não esteja condicionado a conceitos expressos e impostos por uma ideologia, sela ela qual for.

“Um sonho absurdo? Não possuímos direito maior e mais inalienável do que o direito ao sonho. O único direito que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar.”

Jorge foi um dos que me levaram à ideologia comunista em 1967, aos 17 anos. Que congraçamento gostoso sinto ao ler essas linhas do escritor que tanto mudou sem mudar entretanto no essencial, seu amor a seu povo e sua terra - e, mais além e mais fundo, seu amor à humanidade, não a Humanidade dos líderes e utopias, apenas a humanidade dos seres humanos. E, nisso, queira ou não, Jorge, se você não foi um grande líder, foi um grande mestre.