Pique-salva era a melhor brincadeira porque nos permitia ser já meninos o que seríamos depois como homens. Começava com dois escolhendo seus times, e aí já aprendíamos liderança. Eles jogavam par ou ímpar e o vencedor escolhia seu primeiro companheiro, depois o perdedor escolhia, até que, formados os times, eles jogavam mais um vez decidindo quem se esconderia e quem procuraria nas quatro quadras a partir do poste perto da esquina.

No tempo do pique-salva
No tempo do pique-salva | Foto: Álbum de família

Enquanto um contava até cinquenta em voz alta, um time ia se esconder debaixo de carros, nas árvores ou nos jardins das casas, e os que depois iam procurar, abraçados em redor do poste, nada espiavam até pra brincadeira não perder a graça, e assim aprendíamos respeito às regras. Quem era achado podia correr, driblando os perseguidores até que alguém conseguisse lhe dar dois tapas nas costas, pronto, estava pego e ia ficar preso com uma das mãos no poste, a outra mão pegando a mão do preso seguinte.

Assim ia se formando uma fila de presos, que porém podiam ser libertados por alguém que corresse driblando até tocar nalgum deles – que então corriam para a liberdade mas já perseguidos pelos do outro time, e tudo virava uma grande correria. A glória maior era quando o décimo do time, ainda solto, conseguia libertar os outros nove, o que era muito difícil porque todos os do outro time estariam esperando por ele em redor do poste. Assim aprendíamos conjuntura e oportunidade.

O herói salvador tinha de se aproximar sem ser visto, enfim escolhendo o melhor momento para a investida, quando podia libertar os outros mas quase certamente acabando preso - e assim aprendíamos risco e prêmio.

Uma noite, dois resolveram se esconder no bueiro virando a esquina. À tarde treinaram como retirar a tampa, vendo que só um caberia ali, e o maior disse que seria ele. Depois, enquanto alguém contava até cinquenta lá no poste, os dois tiraram a tampa, ele se enfiou no bueiro e tamparam de novo. Quando lá do poste gritaram que nove já estavam presos, e ele esperava mais um pouco pra causar suspense, seu companheiro contou onde ele estava e então os dois chefes rastejaram até perto do bueiro e, deitados, seguraram a tampa quando ele quis sair.

Quando ele não conseguiu mesmo levantar a tampa gritou que estava ali, tirassem ele dali – e então foi uma risada só. Ele saiu distribuindo chutes e aprendemos sobre astúcia e traição, estrelismo e companheirismo. Anos depois ele diria que não se arrependeu de se esconder no bueiro: - Me arrependi foi de ter ficado bravo.

Lembrei de Leônidas, o chefe dos trezentos espartanos diante de quatrocentos mil inimigos e suas flechas que escureciam o sol: - Melhor, combateremos à sombra.

Sempre que falam em crise e más notícias, lembro desse general, diante da morte próxima mas a salvar ao menos o bom humor. E lamento muito que tanta urbanização tenha acabado com nosso suburbano pique-salva, que nos dava aulas de como formar heróis comunitários, líderes criativos, gente solidária e alegre, heróis e palhaços.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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