A arte pode sublimar tudo, até a desilusão, como na valsa "Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda", com letra de Lamartine Babo e última melodia composta pelo parceiro pianista Francisco Mattoso. As rimas indicam que eram longos os versos de Lamartine, que Mattoso picotou em versos curtos adequados ao compasso ternário do ritmo valsa: “Eu sonhei / que tu estavas / tão linda / numa festa / de raro esplendor / Teu vestido / de baile / lembro ainda / que era branco / todo branco / meu amor”.

Entretanto esse ritmo batidinho se alonga, enquanto a melodia sobe o tom obedecendo aos versos sublimadores do especial momento: “A orquestra / tocou uma valsa / dolente / Tomei-te aos braços / fomos dançando / ambos silentes / E os pares / que rodeavam / entre nós / diziam coisas / trocavam juras / a meia voz”.

Mattoso consegue ajeitar a melodia aos versos de vários tamanhos de Lamartine: “Violinos / enchiam o ar / de emoções / de mil desejos / de uma centena / de corações / E pra / despertar teu ciúme / tentei flertar alguém / mas tu / não flertaste / ninguém”.

O enlevo continua, com a melodia em tom alto sublinhando o idílio do casal: “Olhavas / só para mim / Vitória de amor cantei” – mas eis que o tom baixa e as últimas e poucas palavras desmentem tudo, conforme já previne o próprio título da música: “Mas foi / tudo um sonho / acordei”.

É também sobre desilusão amorosa o tocante samba-canção Rancho Fundo, de Ary Barroso, que já tinha letra de J. Carlos, entretanto trocada por nova letra de Lamartine: “No rancho fundo / bem pra lá do fim do mundo / onde a dor e a saudade / contam coisas da cidade... / No rancho fundo de olhar triste e profundo / um moreno canta as máguas / tendo os olhos rasos dágua”.

Porém com arte o sofrimento parece ser compensado porque o “pobre moreno / que de noite / no sereno / espera a lua / no terreiro / tendo o cigarro por companheiro / sem um aceno / ele pega na viola / e a lua por esmola/ vem pro quintal desse moreno”.

A seguir ressalta-se que “no rancho fundo / bem pra lá do fim do mundo / nunca mais houve alegria / nem de noite nem de dia”, enquanto “os arvoredos já não contam mais segredos / e a última palmeira já morreu na cordilheira / os passarinhos encerraram-se nos ninhos / de tão triste essa tristeza / enche de treva a natureza”.

E então Lamartine brinca com o próprio cenário de tristeza e treva, como se cutucando a dor: “Tudo por que? / Só por causa do moreno / que era grande e hoje é pequeno / pra uma casa de sapê”.

A permanência dessa música no coração dos brasileiros, com dezenas de gravações por grandes intérpretes de vários gêneros da MPB, parece atestar a grande incidência de melancolia amorosa, a doce-amarga lembrança de amores passados. A letra é impiedosa na descrição do negro ambiente visto pelo sofredor, mas a melodia parece dissolver tudo em sua doce harmonia.

Reiterando então: a arte pode sublimar o sofrimento, ou, conforme a origem latina da palavra “sublime”, elevar, colocar acima do chão comum ou cotidiano. Deve ser por isso que guardamos na cabeça as “canções do coração”.

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