Admiro a coragem da cunhada que foi ao Rock in Rio acompanhando as filhas moçoilas. Eu, pra não ir, apelaria até para a Constituição, “ninguém será obrigado senão em virtude de lei”. Só de ver o tamanho dos palcos dá cansaço. Mas é bonito ver a moçada correndo pra entrar, pulando de alegria, soltando os gritos ancestrais do ritos, cultuando mitos, chacoalhando a alma. E não tenho inveja, tenho saudade.

Minha geração viu nascer a onda dos festivais, que (excetuando os tradicionais festivais nativistas gaúchos) começou na televisão e acabou virando moda, até cidadezinhas tiveram seus festivais competitivos de música, enquanto também proliferava a moda dos festivais pops de rock e MPB. E, embalado pela onda hippie mundial e oportunizado como protesto à nossa ditadura, em fevereiro de 1972 surgiu o Festival de Guarapari, por onde acabei passando com o amigo Apolo Mário.

Era para ser um Woodstock brasileiro mas foi um fiasco. A grande área foi toda fechada com cerca de arame farpado de palmo entre os fios, mais esticados que corda de viola, vimos logo que seria sem chance uma gloriosa fenestração. Com mochilas nas costas, o plano hippie era depois ir dormir na praia.

Até podíamos pagar, mas mais gostoso era ficar fora com algumas centenas, que zoavam ali esperando abrirem o portão. O som era tão potente que ali fora ouvimos perfeitamente quando Luiz Gonzaga, chamado ao palco, deu uma sanfonada e falou que queria cantar pra todo mundo, então deixassem entrar a moçada lá de fora.

A moçada exultou, e Gonzagão continuou sanfonando frouxo e dizendo que então, pois é, estava esperando botarem a moçada pra dentro pra começar a cantar, e assim continuou e quem é que ia calar ou tirar do palco o Rei do Baião?

Aquilo se prolongou por vários minutos, Gonzagão sanfonando e enrolando, a moçada lá fora gritando, a moçada de dentro também, e gritar tinha mais gosto porque era ditadura, gritos de não se conformar e se sentir heróis por alguns momentos. O festival só não tinha sido proibido pra não parecer ditadura, mas por isso mesmo recebia muito menos público do que esperado, e assim a graça de Gonzagão também tinha gosto de pirraça.

E de repente abriu-se o portão e entramos aplaudindo e sendo aplaudidos, uns quinhentos hipongas que nos espalhamos entre outros tantos pela área de terra nua. Ouvimos Milton Nascimento e Ângela Maria, depois fomos dormir na praia, mas polícia não deixou, o festival era vigiado por dentro e por fora. Então fomos dormir num morro, enrolados nos ponchos com toucas na cabeça e coturnos nos pés, olhando lindas e frias estrelas.

Meio século depois, dá uma inconsolável saudade dos nossos ponchos e dos coturnos que hoje só o Mário Bortolotto usa, e é um assombro saber que o mega festival do Rock in Rio lota os hotéis. Desconfio que, se uma fada me devolvesse meio século, eu estaria lá, não só para ouvir música e dançar mas também – já que o rock é o reino das atitudes – para ver se alguém supera o velho forrozeiro disposto a tocar só se fosse “para todos”. Como é bom lembrar de gente boa!