Neto adolescente diz que quer correr a São Silvestre, fico feliz, digo que ele tem biotipo de corredor, pode até se dar bem. Desde, claro, que mantenha o sonho, treinando e melhorando até correr 15 quilômetros em menos de hora, realmente competindo em vez de só se divertir, o que porém também não será ruim se quiser assim. Afinal, muitos vão lá correr por farra, e os últimos são até mais aplaudidos que os primeiros, numa corrida que acolhe cadeirantes, idosos e palhaços.

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Mas ele diz que vai competir, vai passar 2022 treinando e... emudece olhando o celular e descobrindo que a idade mínima para a São Silvestre é 18 anos. Mas logo se recupera lendo que há também a Silvestrinha para menores, e se anima: assim terá quatro anos para se preparar! Digo que então terá de competir principalmente com corredores do Quênia, que teve três entre os cinco primeiros na última corrida, e terá também de ter cabeça de corredor.

Cabeça de corredor? – ele estranha, então conto que, como é uma corrida com 96 anos, que vejo na tevê desde rapazola, sei que no começo há descidas onde é fácil se iludir, correr demais e se cansar, daí ficando para trás. Como também há uma subida cruel antes do final, e que pode ser fatal se a cabeça não souber lidar com o corpo que tem. Em muitas chegadas, alguém dispara vindo lá de trás e acaba vencendo; uma vez, o dianteiro olhou para trás, o outro passou pelo outro lado e assim ele nem viu quando perdeu a corrida nos últimos metros.

Lembro do filme "Os Jogos", que reúne numa só corrida os principais campeões (ou quase) da história das maratonas. O inglês, que treina subindo morros com o treinador (Sean Connery) nas costas, e no começo da corrida dispara, energizado por uma super dieta, mas por isso mesmo depois ralenta e vai ficando para trás. O norte-americano (Ryan O´Neal) toma umas bolinhas e acaba tendo um ataque cardíaco no meio da corrida. Outro, o famoso Zatopeck (Charles Aznavour!) mantém uma mesma velocidade média, com que acaba ultrapassando a todos mas... no final, quem surge no estádio para vencer a prova é o etíope Abebe Bikila, que na última hora resolveu correr descalço porque os tênis novos lhe machucavam os pés - ou seja, além de preparo é preciso estar pronto até para improvisar fiel à própria natureza.

Todos, entretanto, treinaram e se dedicaram tanto, digo ao neto, mas sempre só um vence, valerá a pena? É, esforçar-se tanto para ganhar uma medalha, já que só os profissionais conseguem disputar os quase cem mil reais do primeiro prêmio, valerá a pena? Ele me olha como se eu fosse um estranho de repente, diz que não vai competir por prêmio mas pelo desafio, então engulo silêncio e orgulho.

Afinal, todos nós corremos uma São Silvestre todo dia, nas ruas, nos carros e nos ônibus, no trabalho e em casa, planejando e produzindo, servindo e cuidando, deixando a vida em ordem para seguir sempre em frente, sem se dar ao luxo de desanimar e sem se iludir com outros prêmios, que o prêmio maior é este mesmo de ganha a vida, com medalhas que ficam dentro do peito.

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