Como a MPB trocou a tragédia do 'Ébrio' pelos peixinhos da bossa
O tragicismo desgraceiro seria confrontado pela Bossa Nova, com sua visão otimista e linguagem graciosa
PUBLICAÇÃO
sábado, 30 de novembro de 2024
O tragicismo desgraceiro seria confrontado pela Bossa Nova, com sua visão otimista e linguagem graciosa
Domingos Pellegrini

A música "O Ébrio" é o mais forte exemplo de um mal que acometeu a MPB, o desgracismo, até a chegada ensolarada e alegre da Bossa Nova. O autor e intérprete de "O Ébrio", Vicente Celestino, com essa música lotou teatros e grandes circos por mais de décadas, e a peça de teatro homônima ficou em cartaz em São Paulo desde 1942 até 1960. Em 1946, o filme "O Ébrio", dirigido por sua mulher Gilda de Abreu, bateu nas bilheterias o big filme americano "E O Vento Levou."
Assim se mostrou que, como dizia João Milanez, nossa gente gosta de desgraceira. Pois antes até de começar a cantar, em monólogo o cantor personagem contava que foi cantor de sucesso, casou, mas a mulher amada “fugiu com outro”, deixando filha que ele criou, virando bela moça “que Deus levou para nunca mais voltar”. Aí ele vai “caindo, caindo”, até “levar uma vaia num picadeiro de um circo”. Então começava a cantar com seu vozeirão os versos trágicos famosos: “Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer”...
O ébrio desfiava desgraças cantando que só na taberna encontrava abrigo, depois de “nadar em ouro” e ter “alcova de cetim”, descobrindo porém que era um “falso lar” que a chorar deixou, pois “cada parente, cada amigo era um ladrão”... Mas ele ainda saca mais desgraças: implora a esses falsos amigos que, quando morrer, na sua campa não deixem qualquer inscrição, “deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar este ébrio triste, este triste coração”.
E expressa um último desejo: “que na campa em que eu repousar / os ébrios loucos como eu venham depositar / os seus segredos no meu derradeiro abrigo / e suas lágrimas de dor no peito amigo”.
Esse tragicismo desgraceiro seria confrontado pela Bossa Nova, com sua visão otimista e linguagem graciosa mesmo ao tratar de traumas do amor, como na música marco "Chega de Saudade" de Tom e Vinicius: “Vai, minha tristeza / e diz a ela / que sem ela não pode ser”, pois “chega de saudade / a realidade é que sem ela / não há paz, não há beleza / é só melancolia que não sai de mim, não sai”, numa simplicidade de esparsas rimas.
Ao contrário porém da desgraça amorosa, a felicidade, mesmo ainda em forma de apenas desejo, passa a merecer marcantes rimas: “mas se ela voltar / que coisa linda, que coisa louca / pois há menos peixinhos / a nadar no mar / do que os beijinhos/ que eu darei em sua boca”. Permite-se até trocadilho: “Colado assim / calado assim / abraços e beijinhos / e carinhos sem ter fim”.
Além de esperar o melhor do futuro em vez de lamentar o pior do passado, encerra-se com repto confiante: “Que é pra acabar co´esse negócio / de você viver sem mim / Não quero mais esse negócio / de você tão longe assim”.
E o encerramento melhora mais, ao passar do “eu” singular para o plural casal: “Vamos deixar desse negócio / de você viver sem mim”. O discurso másculo-trágico do Ébrio foi superado pela fala carinhosa que quer deixar de saudade. Não se cultiva a saudade, dispensa-se a saudade e os tantos sentimentos de baixo astral antes comumentes.
Assim, do desgracismo para a bossa, a MPB deu mais que um salto: foi, com novo espírito, um vôo que levaria a música brasileira aos palcos do mundo.

