Com carinho
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segunda-feira, 13 de maio de 2024
Zilma Santos
A expressão “manual de instruções”, como também “trabalho manual” vem da mesma palavra latina “manualis”, mãos. O trabalho manual é irmão do trabalho braçal, mas o manual de instruções é assim chamado por dever estar sempre à mão, perto da máquina ou aparelho cujo uso instrui.
Mas minha furadeira elétrica tem 26 anos e nunca consultei seu manual, tão simples e eficiente ela é, companheira que nunca falhou. Outro dia, depois da usésima vez lidando com ela, me peguei lhe fazendo carinho, e disse a mim mesmo: não, você não está ficando louco, ela merece.
Carinho se faz com as mãos, embora os olhos e a voz também possam ser carinhosos. E o melhor carinho que se pode receber é de alguém que se diga orgulhoso de nós, como também o melhor carinho que podemos dar é a alguém de quem nos orgulhamos.
É usual dar carinho aos que amamos, mas muitas vezes e por muita gente o carinho é esquecido ou despraticado. É o caso dos casais há tanto tempo juntos, partilhando rotina diária, que desacham carinho, ou seja, nunca acham tempo ou motivo para se acarinhar. Devem pensar que isso é coisa para jovens, deixando assim de viver o fato de que carinho renova toda relação humana.
Há gente carinhente, carente de carinho, e que não tem qualquer vergonha ou temor de confessar e exigir isso. E há também os jovens descarinhentes, os que não percebem que, quando mais idosos ficam seus pais e avós, mais valorizam e precisam de carinho.
O carinho pode ser físico, como o toque no ombro que recebi de minha primeira professora. A tarefa escolar do dia era desenhar uma casa, e a minha desenhei com cachorro e jardim, onde uma vaca pastava enquanto passarinhos passavam no céu, e também com uma árvore cheia de maduras frutas vermelhas. Muito bom, ela falou com voz carinhosa me dando um leve aperto no ombro, que desconfio me impulsionou para as artes, portanto um carinho até, digamos, vitalício.
O carinho pode também ser palavral, na forma de elogio (sincero e merecido), e também pode ser gestual, como deixar uma flor ao lado de uma xícara na mesa do café.
Há também atitudes carinhosas, como no jeito de tratar alguém. Menino vi o filme King Kong, que culminava com a famosa cena do gigantesco gorila no alto de um edifício, acossado e metralhado por aviões mas ainda segurando na mão, com carinhoso cuidado, a mulher por quem se apaixonara.
Lembro também de Maria de Betânia, que lavou os pés de Jesus. Como lembro daquele coveiro que, com colher de pedreiro e cimento fresco, fez do fechamento do túmulo de Tancredo Neves um ritual carinhosamente eloquente no seu silêncio.
Os humanos não são os únicos a fazer carinho neste planeta, na net abundam videos de bichos carinhosos com os humanos, entre si mesmos e até entre animais tidos como caças e seus caçadores. Mas somos os únicos a ter uma cultura de carinho, desde o costume de dar presentes até o afago na cabeça das crianças, como quem passa uma tocha de humanidade e esperança, a dizer, com um simples gesto, que apesar de tudo e contudo e todavia, com carinho continuamos humanos ou mais humanos.