Tera-pia
Poderia ser uma oração: creio em lavar a louça todo dia como terapia, a pia meu altar; grato pelo detergente desconhecido de minhas avós, abençoado pela água encanada que elas só viram sair da torneira depois de muito puxar água de poço; e mais grato ainda pela lavação da louça me dar estes instantes de paz e confiança na família, para quem lavo esta louça, para a continuidade da Humanidade, mas epa, aí já estou me valorizando demais, a terapia virou egolatria.
Entretanto creio que o fogão e a pia são altares da comunhão familiar, um sujando e outro lavando todo dia a louça e sua companhia, a família orbitando em redor. A curiosidade nos levou a avançar pelos vales do mundo, mas só viramos gente mesmo quando tivemos louça pra lavar, deixando a vida nômade. A vida nômade nos dava as frutas do vale seguinte mas custava mortos e feridos na constante caminhada; e em redor das pias cresceriam as aldeias e cidades.
Quando abandonei a utopia socialista, costumava dizer que só conservava uma uto-pia: as louças se lavando sozinhas... E sempre lavei louça feliz, cheio de motivação ancestral, militante da evolução com água e sabão, até que surge agora um novo desafio, a lavadora de louça. Vem embalada em fortes argumentos:
- Você não pode se apegar à velha pia por temer tecnologia! Honre a evolução que aposentou o poço de água, o sabão caseiro e tanta trabalheira e sofrimento! Menino você ainda viu privada em casinha no quintal e jornal cortado como papel higiênico, tem saudade? Então: evolua!

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| Foto: Shutterstock



Lembro do amigo com quem morei em São Paulo, e que tinha duas dúzias de pratos mesmo morando sozinho. Ao chegar não entendi porque, até ver que ele ia sujando louça e deixando na pia para lavar só no sábado, até o dia em que chegou, acendeu a luz e ratazanas passeavam pelas pilhas de pratos. Ele se foi deste vale de lágrimas e louças, mas decerto hoje compraria uma lavadora.
Entretanto argumento que, como toda tecnologia, não é perfeita, é preciso limpar os detritos dos pratos antes de lavar – mas, sussurra o deus Tecno, para lavar na pia isso também é preciso... Então está resolvido, teremos lavadora - mas, prometo, pia, você não será esquecida. De vez em quando voltaremos a nos ver como antes, ouvindo música e lavando pratos numa festa de espuma, como diz a Rita Lee, só pra viver saudade, pura tera-pia. A louça lavada e arrumada me olhando do escorredor, a dizer oi, pode me guardar que amanhã estou de volta, viu?

Notícia da Chácara
Bromélias
Passei por bromélias grande parte da vida, dando a elas a atenção que um cachorro dá a um poste deitado. Mas um dia, vadeando um riacho, Dalva deu de apontar bromélias com paixão, suas discretas flores e espinhentas sutilezas.

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| Foto: Dalva Vidotte/ Divulgação



Aí fui descobrir que o nome é homenagem ao botânico sueco Olof Bromelius, para as mais de mil espécies no planeta, vivendo em árvores e rochas, desde as mais miudinhas até as gigantes de dez metros de altura. São fontes de vida, como micro-habitat de insetos (inclusive o mosquito da dengue, por isso tiramos as nossas do relento e só aguamos suas raízes, não suas folhas em cone). São polinizadas por beija-flores, morcegos, borboletas, abelhas e besouros, ou seja, apesar de espinhentas, tem uma intensa vida sexual...

Neste tempo em que tanto se fala em exclusão e inclusão, na chácara cultivamos o orgulhinho de cuidar de nossas bromélias com o mesmo carinho com que cuidamos das orquídeas. Como toda gente é gente, toda flor é flor.