Andando com o ET
Não é fácil conviver com o ET, pois ele não apenas olha, ele vê e questiona tudo que vê
PUBLICAÇÃO
sábado, 06 de janeiro de 2024
Não é fácil conviver com o ET, pois ele não apenas olha, ele vê e questiona tudo que vê
Domingos Pellegrini
O ET parece gente, tanto que anda comigo e ninguém estranha, ele é que estranha:
- Por que dizem “aquele abraço” assim pertinho e não dão o abraço?
- Por que dizem “nem te conto” e em seguida contam tudo?
- Por que casam se depois vivem se maltratando?
- Por que os carros podem chegar até a 200 se o máximo permitido é 110?
- Por que falam mal dos políticos mas diante deles só ficam sorrindo?
- Por que comemoram aniversário se é um ano a menos?
- Por que não olham o nascente e o poente se são tão bonitos e sempre diferentes? O que vêem nos fogos de artifício sempre tão iguais?
- Por que gostam tanto de barulho se no silêncio se ouve muito mais?
- Por que pedem tanto a Deus se dizem que Deus sabe o que faz? Querem mudar Deus ou não acreditam no que dizem?
Não é fácil conviver com o ET, pois ele não apenas olha, ele vê e questiona tudo que vê. Faço compra numa loja 1,90 e vou saindo, ele pergunta se não vou pegar o troco. A caixa fala que não tem moeda de dez centavos, e ele:
- Então por que vende a 1,90? Não tendo troco, devia baixar pra 1,50, ou também não tem moeda de 50 centavos?
Explico que 1,90 é só para parecer barato, ele sorri torto:
- É, assim parece barato para quem é bobo... Mas quem compra sem pegar troco é mesmo bobo, não?
E é difícil explicar certas coisas ao ET. Vou tirar nova carteira de identidade, o fotógrafo oferece gravata, mostrando várias à disposição, ele ri:
- Mas quem não usa gravata, por que vai aparecer de gravata? É carteira de desidentidade?
Fica olhando as gravatas até que seu olhar se ilumina:
- Entendi! É pra mostrar o tipo de homem conforme o tipo da gravata! Mas e as mulheres? São de um tipo só?
No cartório peço fotocópia autenticada da nova identidade, ele lembra que não é preciso, leu todas nossas leis:
- O novo Código Civil, que já nem é tão novo, diz que não é mais preciso autenticar documentos.
Explico que os órgãos públicos continuam exigindo, ele não entende:
- Os órgãos públicos não precisam obedecer as leis?!
Vou atravessar a rua, ele me segura:
- Não vai atravessar na faixa?
Explico que é uma rua de pouco tráfego. Ele abre os braços:
- Mas o lema da bandeira não é Ordem e Progresso? Então quando o tráfego é pouco, a ordem também pode ser pouca? Mas assim o progresso também não será pouco?
Ando com o ET me enchendo os ouvidos, até que expludo:
- Errar é humano, cara!
- Mas acostumar-se com o erro não é desumano? Afinal, se o homem é o único ser no planeta a se desenvolver independente da natureza, não será mais humano errar cada vez menos?
Entro no ônibus, ele atrás. Vê uma senhora em pé, fala a um jovem:
- Não vai ceder o lugar? Está doente?
O rapaz olha bem o ET, e ele é franzino mas olha firme, o jovem levanta, a senhora senta, olhando o ET como se soubesse que é um ET, ele me sussurra:
- Fiz algo errado?
Não, digo, está tudo certo, ele se tranquiliza, sorri para a mulher, ela temerosa abraça a bolsa baixando os olhos. Ele chacoalha a cabeça, como ajeitando os pensamentos, depois me diz que é difícil entender, eu digo que sim, gente é difícil de entender.

