A geada vermelha
PUBLICAÇÃO
sábado, 03 de julho de 2021
Domingos Pellegrini
Nossa primeira geada-negra foi a 27 de julho de 1955, uma semana depois que completei seis anos, e lembro de meu pai lamentar ter comprado pouco antes um sítio, agora com preço rebaixado por causa da geada no café. Lembro também de um bar com saqueiros no balcão, só de calção e alparcatas, corpo coberto de pó de estopa, bebendo uma antes de voltar para o armazém, muito animados porque com a geada, falou meu pai, o preço do café estava muito bom. E eu não entendia como a tal geada podia ser tão boa para uns e tão ruim pra outros.
Na geada-negra de 1975, lembro de deparar com a grama esbranquiçada de gelo, quebrando a estralar sob os pés. Como repórter agrícola desta FOLHA, tinha ganhado visão além do mundo urbano, mas só fui rever cafezais uma semana depois, quando já tinham desfolhado, o chão enegrecido de folhas secas, os galhos eriçados para o céu, como a clamar, pensei então, hoje diria como a aceitar.
Pois o que dá pra rir dá pra chorar, conforme o samba de Billy Blanco. A de dois anos atrás “queimou” os ponteiros e galhos de várias arvorezinhas aqui do nosso nascente quintal. Plantadas há pouco mais de ano, estavam com galhos novos cheios de novas folhas e, depois da geada, foi uma tristeza ter de cortar os galhos ressecados. Mas daí tivemos a alegria de ver rebrotarem, as arvorezinhas se cobrindo de folhagem nova.
As folhas parece que voltam com mais vontade de viver, disse Dalva, e certamente é isso mesmo, se as plantas tem sua inteligência conforme mais e mais descobrem os cientistas. “Quase morri”, terá pensado aquela ali, “depois tiraram parte de mim mas renasci, vou aproveitar a vida!”
Em setembro, a goiabeira, que também tinha se despido no inverno, já tinha toda se enfolhado e floriu de perfumar o ar, mas não ligamos porque as goiabas sempre tinham ferrugem por fora e corozinhos por dentro. Mas agora estavam perfeitas, tanto que fizemos goiabadas, enchemos o congelador, comemos goiaba que nem crianças do tempo em que subiam em árvores.
A geada-negra congela a seiva das plantas, ressecando galhos e até a planta toda. A geada-branca, menos gelada, é assim chamada devido ao orvalho congelado cobrindo tudo como manto branco. Mas uma e outra são boas para as culturas de inverno, como o trigo, e também para certas hortaliças. Geladamente liquidam com pragas e doenças nas plantações como na nossa goiabeira, propiciando belos frutos e, assim, toda geada é, digamos, vermelha.
E de repente redescobrir aquele velho gorro, aquelas meias de lã, aquele casaco tão europeu que você pensa nunca vai usar, até a geada. Quando as noites são boas para dormir de pés juntos, conforme um casal amigo: é como se os pés tivessem passado o ano inteiro esperando, diz ele, e ela completa: não dá pra dormir abraçado sem alguém ter torcicolo, mas pé não tem pescoço...
Vivendo, geando e aprendendo. Ou revivendo, como parece dizer a goiabeira, ainda com velhas folhas mas já uma folhinha nova. Benvinda a um mundo sem geada, meu bem, pelo menos até o inverno do ano que vem.