O Paraná ainda comentava o desaparecimento de Leandro Bossi, 8 anos, ocorrido em fevereiro de 92 na cidade de Guaratuba, quando nova tragédia acontece naquele badalado balneário do litoral paranaense: a morte, em abril, de Evandro Ramos Caetano, 6 anos, sacrificado num ritual macabro. Presos em Guaratuba, os assassinos do menino acusam os líderes da organização Lineamento Universal Superior (LUS), a brasileira Valentina Andrade e o argentino José Teruggi, de estarem envolvidos no rapto de Leandro Bossi que, supostamente, teria sido assassinado num ritual semelhante ao que sacrificara Evandro. Era julho de 1992.
Em Londrina, a casa da rua Santiago, essa mesma do presépio que tanto encantamento está causando nas pessoas que a visitam no jardim Bela Suiça, foi invadida pela Polícia em busca de provas que pudessem incriminar o casal que, se dizia na época, utilizava crianças em rituais de magia negra. Na busca, os policiais apreenderam livros, cartazes, fitas cassetes, fotos, catálogos - material altamente suspeito e, na visão dos policiais, prova suficiente para indiciar o casal no uso de crianças para a prática de rituais macabros. No maleiro da rodoviária, a Polícia de Londrina apreendeu malas e sacolas com trajes - túnicas e capuzes - que, diziam, eram utilizados em rituais satânicos, além de armas, fitas de vídeo e agendas com nomes e endereços de seguidores da seita. A casa também sofreu dois atentados - um à bomba e outro à bala - e, além disso, alguns moradores do bairro fizeram passeata de repúdio em frente à casa. A vida do casal foi vasculhada. Em setembro daquele mesmo ano, José Teruggi e Valentina de Andrade voltaram para o Brasil a fim de encarar de frente seus acusadores.
‘‘Fizeram uma maldade muito grande comigo. Voltei, não para me vingar, porque não sou vingativa, mas para mostrar que eu sou uma pessoa de bem e que não deve nada à sociedade’’, destaca Valentina Andrade, sentada na área interna que margeia a casa, ao lado da piscina. O grande sucesso que o seu presépio tem feito na cidade a tem deixado envaidecida embora, diga, não o tenha feito ‘‘com a intenção de aparecer e sim no desejo legítimo de levar a felicidade ao próximo que, expontâneamente, está conhecendo a minha verdade pois nunca fiz mal a ninguém’’.
‘‘Sempre que choro estou dizendo a verdade’’, justifica-se Valentina, depois de uma das inúmeras vezes que chorou. Na casa, é chamada de ‘‘mamãe’’ não só pelo filho adolescente, mas também pelos membros do Lineamento, que estão passando as festas de final de ano com a ela. Valentina não aceita ser tratada como bruxa. ‘‘Isso uma imundície. Quem maltrata as crianças, não passa de uma besta. Temos várias crianças no Lineamento e as tratamos com todo o carinho e amor que elas merecem’’, rebate Valentina.
‘‘Eu me casei muito cedo, aos 18 anos. Me mudei para cá em 1953, junto com o meu marido e minha filha. Ele, que tinha experiência no ramo, foi ser gerente do hotel Monções e eu, que nunca tinha trabalhado fora, telefonista. Nós acabamos indo morar num quarto do hotel’’, destaca Valentina, lembrando que seu primeiro casamento acabou porque pegou o marido surrupiando dinheiro grosso do hotel.
Separada do marido aos 23 anos, Valentina conta que sofreu muito com o preconceito que, na época, rondava as mulheres em tal situação. Outro acontecimento marcante da sua vida naquela época: ter sido ‘‘crooner’’ da famosa orquestra do maestro Gervásio. Era 1954.
‘‘Um dia, depois de ensaiar para cantar no programa de calouros da rádio Londrina, fui convidada para cantar na orquestra do Gervásio. Os músicos me chamavam de Canarinho’’, revela, contando que ainda sofria muito com a perseguição dos homens - ‘‘Eu não tinha sossego com as cantadas’’ - quando conheceu Duílio Nolasco, que viria a ser o seu segundo marido.
‘‘O Duílio tocava o bar do Grêmio e eu, a pedido do maestro Gervásio, o ajudava enviando convites para os bailes. Uma noite, depois do trabalho, ele fechou a porta de saída por dentro e tentou me agarrar. Eu corri por entre as mesas, ameacei contar pro presidente e ele recuou. No dia seguinte pediu desculpas e, daí em diante, passou a me acompanhar todos os dias até perto de casa. Dizia que me amava. Uma noite, pra me livrar dele, disse: ‘Se você gosta de mim, vamos viver juntos?’ Ele topou na hora. Fui pra casa e chegando lá minha mãe me chamou de vagabunda e me expulsou de casa. Pra onde ir? Passei a noite chorando e no dia seguinte procurei o Duílio, ele disse que era sério o compromisso e, dali mesmo, fui procurar um lugar pra morar’’.
O casamento com Duílio durou 20 anos. E só acabou em Altamira, no Pará, onde o marido, que saiu daqui desempregado, fez fortuna. Numa das visitas a ele, Valentina conheceu o engenheiro Argentino Roberto de Oliveira, hóspede do hotel de Duílio. E, se seu casamento já andava balançando, piorou ainda mais quando o galante portenho se aproximou dela um dia e disse-lhe ao ouvido: ‘‘Eu vou me casar com a senhora’’. Não precisa nem dizer que Valentina estava partindo para o seu terceiro casamento.
‘‘É engraçado, eu que tenho tanto amor, nunca me casei por amor nos três primeiros casamentos, só por desespero. Não quis ficar com um tostão do Duílio, e olha que, na época, ele era a terceira fortuna do Parᒒ. realça Valentina, destacando que é foi nessa época que conheceu o médium Zezinho, pai de santo de Presidente Prudente que vinha vez ou outra a Londrina.
‘‘Ele só recebia médicos, fazia muitas curas, eu sou testemunha. Ele curava tudo. Não sou adepta do espiritismo, mas o que meus olhos viram não vou negar. Sempre fui católica, mas hoje não tenho religião, não preciso. Confio num ser superior, fonte de luz, jamais nas trevas. Com o Zezinho, ajudei centenas e milhares de pessoas’’.
Casada com Roberto de Oliveira, e já participando do Lineamento Universal Superior, Valentina diz que o casamento acabou quando o marido tentou vender os direitos autorais do livro ‘‘Deus, a grande farsa’’. ‘‘Foi imperdoável, ele quis vender a verdade, eu não concordei. Nós recebemos ajuda do alto e não poderíamos vender. Por isso nos separamos’’, conta Valentina, recordando que ficou casada com Roberto, hoje seu grande amigo, de 74 a 87 e que, um mês depois da separação, já estava com o atual marido, o também argentino José Teruggi. E, apontando pra ele, diz: ‘‘Só casei com homens bonitos, eles não procuram beleza’’.
Em Londrina, além de próspera comerciante de móveis usados, Valentina também fez grande sucesso com o programa radiofônico ‘‘Universo e Energia’’, transmitido pela rádio Norte. Sobre o Lineamento Universal Superior, ela diz que a associação proíbe o uso de drogas, da prostituição e que seus membros são doutrinados para não abusar da confiança alheia e nem a pedir emprestadas coisas que provavelmente não poderão devolver. Diz que todos, quando em dificuldades, se ajudam mutuamente e que o Lineamento é ‘‘uma associação sem fins lucrativos’’ que tem cerca de 300 adeptos aqui e na Argentina.
‘‘Nós estudamos o universo, falamos de comportamento humano. Não permito que os casais briguem, prego sempre a união e condeno as bebedeiras. Estudamos civilizações passadas e promovemos a integração do indivíduo na sociedade. No Lineamento, o que nos inspira é o bom pensamento, as boas ações, nunca praticar o mal’’.
Valentina nega todas as acusações e diz que, de tudo o que aconteceu, só foi processada por estelionato, processo já arquivado por falta de provas. Lembrando da volta para o Brasil e dos horrores que passou na fronteira com a Argentina - ‘‘Os federais estavam encapuzados, de metralhadora na mão, nos algemaram’’ - Valentina diz que saiu magoada do episódio, mas sem nenhum ódio no coração. ‘‘Não conheço o ódio, mas conheço a mágoa. Se toda essa gente que falou mal de mim pedisse desculpas, eu choraria e perdoaria. Eu perdôo tudo, desde que seja verdade.’’