Estudar e cuidar. A pandemia mudou a rotina e impactou os estudos dos adolescentes, sobretudo o das meninas. De acordo com pesquisa realizada por londrinense, as jovens, que antes tinham tempo exclusivo aos estudos no colégio, agora, acumulam atividades e sofrem sobrecarga de tarefas domésticas durante o ensino remoto. O estudo intitulado “O Protagonismo da Mulher em Tempos de Covid-19" foi finalista em prêmio de educação em Portugal.

Heloísa Botelho, servidora da rede pública municipal e do Estado, é mestranda em  universidade de Portugal
Heloísa Botelho, servidora da rede pública municipal e do Estado, é mestranda em universidade de Portugal | Foto: Arquivo pessoal

De 336 projetos apresentados, o de Heloísa Botelho ficou entre os 14 finalistas no prêmio Uni-COVID 19, promovido pelo Banco Santander, em Portugal. A pesquisa, com o recorte no país, faz parte de um projeto maior com estudantes do ensino médio nos territórios de língua portuguesa, como Brasil, Angola, Cabo Verde, Santo Tomé e Príncipe e Portugal.

"O que o projeto buscava ali era respostas sociais para o impacto social causado pela pandemia. Acho que são questões que a gente tem que pensar enquanto sociedade, tanto o governo, quanto o pesquisador. Esse é um momento em que a gente está preocupado com a questão econômica, e obviamente é essencial, mas as respostas sociais também são importantes dentro dessa situação”, defende.

Botelho é servidora da rede pública de Educação Municipal de Londrina e da Estadual do Paraná e é mestranda em Ciências da Educação, Administração, Regulação e Políticas Educativas da Universidade de Évora, em Portugal. O projeto é realizado desde abril de 2020. “A gente tinha encontros semanais por gabinete virtual. Na medida que identificávamos esses conflitos que os estudantes tinham durante o confinamento, criávamos estratégias para mediar esses conflitos que estavam afetando a aprendizagem deles. Um deles foi essa desigualdade de tarefa dos lares, em que as meninas sofriam a sobrecarga”, afirma.

Apesar de culturas diferentes, o mesmo conflito foi observado em diversos países. “Na medida em que a gente desenvolvia atividades, algumas meninas entravam atrasadas, explicando: ‘me atrasei, porque precisei buscar lenha’, ‘não posso ligar a câmera, porque estou cuidando do meu irmão’. A família trazia demanda para elas, não percebia que aquilo que elas estavam fazendo era um estudo, enquanto os irmãos homens sofriam essas interferências em menor frequência”, exemplifica.

Uma das propostas de solucionar essa questão, que é tão naturalizada e não percebida pela sociedade como algo ruim, foi a inclusão de mediação de conflitos. A ação envolve a família para trazer suas percepções e propor soluções em conjunto. “A mediação é uma das habilidades que a educação vai precisar desenvolver no futuro. Hoje, a sociedade está a todo vapor, temos que aumentar nossa adaptação e ter resposta assertiva”, defende.

Não só a questão das desigualdades, mas a própria violência doméstica foi mencionada pela pesquisadora. Quando percebido o ambiente violento em que aquelas famílias viviam, os pesquisadores traziam a proposta da mediação para mobilizar uma ação que fosse positiva.

Em conjunto, os mediadores buscam estruturas que estado e município têm para enfrentar o problema e apontando a quem as famílias podem recorrer, em quem confiar e como resolver por meio de instituições de apoio. “Em alguns lugares, as famílias não têm a quem recorrer. Alguns países não têm legislação sobre a violência familiar e da violência da mulher, que não é a única a sofrer violência doméstica, mas é o principal alvo, seguido de crianças e idosos”, menciona.

PRÊMIO



Ter esse trabalho reconhecido, para a pesquisadora, foi uma conquista. “Quando eu saí do Brasil para estudar aqui em Portugal, eu não tinha a intenção de falar sobre isso. Meu foco de pesquisa era a questão da motivação na carreira dos professores, eu estava buscando um projeto de intercâmbio para os professores”, revela.

Em fevereiro, com a chegada da pandemia, viu a inviabilidade de execução do trabalho original. Daí surgiu a questão de desenvolver projeto já focado na realidade atual do confinamento, que impactou a educação do mundo todo. Interligar esse assunto à trajetória pessoal foi fácil.

Satisfeita com o trabalho realizado, acredita que, como mulher, pode incentivar meninas a lutarem por seus espaços. “As meninas precisam de referência. Se tivermos somente nos espaços domésticos ou não ocuparmos locais de topo, como as meninas vão ter referência?”, questiona.

Em Londrina, professoras atuam como mediadoras

Em 2019, a Secretaria Municipal de Educação implementou a Comai (Coordenação de Mediação e Ação Intersetorial), com trabalho voltado para a prevenção da evasão escolar e resgate da criança em situação de vulnerabilidade. A questão é que o problema é mais profundo.

“Nós percebíamos que a evasão escolar era o primeiro grande sintoma. Depois, a gente começava a verificar a exploração sexual das adolescentes, abuso sexual das crianças, trabalho infantil...”, menciona Martinha Clarete Dutra, coordenadora da Comai e da gerência educacional de apoio especializado da secretaria municipal de Educação.

Entre as violências identificadas, a do trabalho no lar. “O trabalho doméstico é uma primazia das meninas, que são vítimas dessa percepção machista, que é estrutural em nosso país, de que cabe à menina trabalhar em casa e atuar como mãe, cuidar da casa e das crianças pequenas”, menciona.

No dia a dia, as professoras mediadoras encontravam a realidade diversa escondida fora dos muros das escolas. “Nesse contato com as crianças, fazíamos as escutas especializadas. A criança dizia: ‘eu apanho, porque eu mereço, eu não fiz o trabalho direito’”, cita.

“Lavar roupa, limpar casa, cuidar do irmão que tem seis meses, a criança, de vítima, se torna culpada e isso é muito sério. A culpada é a mãe, o pai, o tio? Não! Não vamos culpabilizar a família, vamos entender que a família é fruto de uma construção social, nós vamos orientar, monitorar”, explica a coordenadora.

Por isso a mediação. A proposta é que a ação envolva a família em busca de uma solução adequada para a situação em que estão vivendo. O que demanda ação articulada com outros serviços integrantes de política pública municipal para a prevenção e enfrentamento à violência infantil.

O trabalho, portanto, é intersetorial, envolvendo assistência social, saúde, Conselho Tutelar, Nucria (Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes), MP (Ministério Público), Vara da Infância e da Juventude, Defensoria Pública e Guarda Municipal.

Se em 2019, o serviço foi implantado em toda a rede municipal de educação, em 2020, o serviço precisou ser ampliado. Com o início da pandemia e estudo remoto, o trabalho dos professores foi fundamental e passou a atuar também na proteção e defesa de direito dos alunos que enfrentam dificuldades de acesso à internet.

A estimativa é de que quatro mil alunos da rede municipal estejam nessa situação. De abril a dezembro de 2020, foram 24.650 visitas pedagógicas. Em 2021, o trabalho continua. “Vamos fortalecer essa ação, vamos continuar com essa equipe atuando domiciliarmente enquanto for necessário, porque sabemos que a pandemia está longe de ser controlada. Mas temos um desafio maior que será o de ampliar esse vínculo pedagógico”, comenta a coordenadora.