Os batuques de boi das festas de São João deixam saudade em Maria Bernadete de Morais França, 49. Teimosa desde pequena, nunca perdeu a fé na melhor estratégia para conseguir algo: devagarzinho, “comendo pelas beiradas”, foi assim que ela deixou de ouvir o som do Bumba Meu Boi, na periferia de Teresina (PI), para ser professora – e doutora - no curso de Engenharia Elétrica, na UEL (Universidade Estadual de Londrina). Filha de dois “Franciscos”, abençoada por José, seu padrinho, traçou seu caminho a defender que toda garota deve ter o direito de sonhar. É dessa premissa que vem a atuação no projeto que ensina robótica para meninas da periferia de Londrina.

Imagem ilustrativa da imagem Professora da UEL conta como venceu obstáculos até fazer carreira acadêmica
| Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

“Meu professor falou: ‘quem disse que você pode fazer engenharia?’”, recorda. Isso foi na escola técnica, instituição que ela decidiu sozinha se matricular após ter um ano conturbado no colégio. “Deu uma chuva muito grande na minha cidade e a minha escola foi usada como abrigo, no primeiro semestre ficamos sem aula e o primeiro ano do ensino médio foi muito mal feito”, comenta.

Curiosa de nascença, nesse tempo que ficou sem aulas foi visitar outras instituições. “A escola técnica era boa, federal, tinha laboratório, atividades extraclasse, para mim era um mundo de possibilidades. Aí eu disse: ‘ah esse ano foi tão bagunçado mesmo, vou fazer esse primeiro ano de novo’”, ri. A estratégia sempre foi não temer ao tempo e caminhar devagar para ir longe.

Na nova escola decidiu pelo curso técnico em eletrônica, vocação herdada do pai, que manteve uma oficina no quintal da casa até ser assaltado e desistir do trabalho. “Papai era incrível, uma pessoa que nem sabia ler direito e fez um curso assim (por correspondência). E ele era bom”, afirma. Seo Francisco era casado com Francisca e tiveram sete filhos, Berna (com R gutural), era a terceira.

Os pais não cobravam dos filhos, a pressão dos estudos vinha mesmo do padrinho, José Soares, que exigia até nas férias que ela se mantivesse estudando em casa. “Meu padrinho foi um diferencial na minha vida, porque essa coisa de estudar veio dele. Ele queria que eu fosse médica”, ri.

Mas o padrinho foi embora para Campina Grande, na Paraíba, e essa influência sobre a carreira da afilhada foi se perdendo, deixando apenas a permissão para sonhar com uma graduação. “Eu descobri que meu professor tinha feito faculdade em Campina Grande e eu, muito inocentemente, fui falar para ele: ‘cidade do meu padrinho, quem sabe eu não vá fazer engenharia elétrica lá’, e ele disse: ‘não, você não faz. É muito difícil, concorrência alta, só passa quem faz as melhores escolas’. Ele não entendeu. Eu podia não passar na primeira vez, mas me preparando eu poderia passar”, argumenta.

Engenharia elétrica para uma menina da periferia parecia abuso, para ela um desejo normal. Plano traçado, foi a Campina Grande e fez o primeiro vestibular apenas como experiência, mas teve uma surpresa. “Meu padrinho disse que a sobrinha dele tinha ouvido meu nome no rádio, mas eu dizia que não era eu, então ele pediu para ir até a escola mais próxima para ver se tinham o jornal. Eu fui sem pretensão, eu realmente não acreditava que poderia ser eu. Quando vi meu nome, tratei de olhar o RG para confirmar”. Foi aprovada no primeiro vestibular, no curso e faculdade que o professor disse que não eram para ela.

Realmente, eram poucas meninas na turma e ela, a única mulher a se formar, ainda que sob fortes intercorrências. Berna engravidou durante o curso, também perdeu o pai no mesmo período. Duas notícias que o padrinho recebeu de supetão. Na tentativa de avisar a afilhada sobre o pai, ligou para a casa da família do noivo. “Minha sogra disse: ‘mas cuidado como vá falar a ela, porque ela está grávida’”, hoje conta rindo. “Coitado, ele teve duas notícias, de que tinha perdido o amigão dele, um irmão, e que a afilhada estava grávida. E durante os estudos!”, menciona.

Gestação tranquila, não interrompeu os estudos. Ela, o marido e o filho saíram da casa do padrinho quando o casal foi aprovado no mestrado, que lhes rendeu duas bolsas de pesquisa. Na conclusão, o companheiro fez o concurso para professor na UEL. “Ele estava muito reticente, dizia que era muito distante, mas nós dois já não estávamos mais na nossa cidade de origem, eu dizia que tinha que tentar”, conta como chegaram em Londrina.

Berna superou todas as perspectivas que tinham para ela, tentou doutorado em Santa Catarina, mas foi desligada por motivos que prefere não entender. “Eles disseram que iam me desligar. ‘Como assim? Por quê?’, até hoje não entendo o que aconteceu. Eu tinha feito minhas disciplinas com conceito A, ou seja, eu era uma boa aluna”, conta. “Na época foi bem complicado, foi difícil, porque de novo questionaram minha capacidade. Um deles disse: ‘você não dá para isso, isso aqui é um caminho que não dá para você’. Esse dia eu chorei”, revela.

Experiências que alimentam a vontade de estimular mais meninas ao curso. Mesmo depois de voltar para Londrina e também ser aprovada no concurso para docente do Departamento de Engenharia Elétrica, do CTU (Centro de Tecnologia e Urbanismo), da UEL, foram anos até que ela retomasse o doutorado em outra universidade, em Campinas (SP). Proposta bastante ousada para a menina de Teresina. “Nem imaginava tudo isso, era uma perspectiva muito longe da gente”, conclui.

Em 2020, vai fazer 22 anos que Berna está em Londrina e todo ano retorna ao Piauí para rever a família. Essa história também reflete no projeto de extensão em que atua chamado TechNinas - Robótica para Meninas, como incentivo de garotas para a área. “As pessoas não sabem que também pode ser para elas, é um mundo totalmente à parte imaginar frequentar uma universidade. Ainda existe uma parcela enorme que acha que jamais vai ser capaz de frequentar um curso superior”. Com essa proposta, meninas da periferia podem entender que esse caminho também pode ser delas, ainda que alguém possa dizer o contrário.

Lembrança da infância, os bois agora ficam pendurados na parede da sala em uma pintura colorida. “Comprei em São Luís (MA), quando fui para o casamento de uma prima depois de muito tempo sem voltar ao Nordeste em período de São João”, detalha. Rever o padrinho é uma promessa, viajar o Brasil todo uma proposta em andamento, abrir portas para que mais meninas não desistam de sonhar, um ideal.