Marcelo José de Sousa viveu nas ruas durante alguns meses e agora está se reerguendo: "Cada dia é uma vitória"
Marcelo José de Sousa viveu nas ruas durante alguns meses e agora está se reerguendo: "Cada dia é uma vitória" | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

Ibiporã - Dois mil e vinte definitivamente não foi um ano fácil. Para algumas pessoas, mais que a pandemia de coronavírus, os percalços ao longo dos últimos 12 meses foram difíceis e até de sofrimento. Mas em meio ao caos também foi possível encontrar oportunidades para um recomeço. Desde agosto, Marcelo José de Sousa, 39, tem buscado reescrever sua história.

De sorriso presente e lembrando de sua fé, pensa no futuro como um oásis. Um paraíso que para a maioria da população é rotina, é um porto da felicidade plena para ele. Sousa é ex-morador de rua e está deixando a dependência química. A derrocada começou em janeiro deste ano, quando a esposa com quem conviveu por 11 anos o deixou, sem maiores explicações. Deprimido, procurou refúgio no álcool e nas drogas.

Perdeu o emprego, a casa alugada e se viu obrigado a seguir vagando pelas ruas de Ibiporã (Região Metropolitana de Londrina), cidade onde nasceu. “Passei a ir para a balada, fumar cigarro, consumir bebidas alcoólicas. Sem trabalho não tinha como pagar o aluguel e fui para a rua. Ficava numa estrutura em Ibiporã que foi construída para ser terminal (mas nunca foi utilizada)”, conta. “Bebia para esquentar do frio, esquecer a tristeza, a solidão.”

Nas ruas conheceu um novo amor, a Andreia, com quem iniciou um relacionamento. Foi uma companhia em meio à insegurança de quem se depara com a falta de um teto. “Não dava para dormir direito, porque na rua tem maldade. Tinha medo de encontrar parentes na rua. Estava na fase em que não conseguia sair”, afirma. A chance de deixar esta realidade para trás encontrou no abrigo que passou a ser oferecido pela prefeitura em razão da Covid-19.

Tomando consciência do desfecho que poderia ter caso continuasse no vício, foi para o acolhimento, onde permanece. “Beber e fazer uso de drogas não resolve o problema, só acarreta mais”, adverte. Conseguiu um emprego em uma cooperativa de material reciclado em Londrina, área que gosta e, inclusive, já teve empresa, no passado. Pai de dois filhos e até avô, mantém contato com a família, principalmente, via redes sociais.

Com o coração cheio de esperança, se orgulha do atual momento. Há quatro meses está na abstinência, no entanto, ainda em fase de desintoxicação. “Cada dia é uma vitória”, resume, sabendo que aos poucos está subindo o pódio para seu grande triunfo. “Desejo ter um lar, em que deite na cama e possa falar que é meu. Viver com a minha esposa, ligar para minha mãe no fim de semana e chamar para um churrasco, sair para passear”, planeja.

IGUALDADE E SONHOS

Junior Cristiano Scheer também deixou as ruas. Tem convivido no abrigo ofertado pelo poder público ibiporãense e feito desta experiência um propulsor de resiliência. Natural de São Paulo, foi embora do município de Iacanga, onde chegou a trabalhar como varredor temporário da prefeitura, para um novo destino junto com o pai, que só foi conhecer após 26 anos.

“Meu pai estava se separando da esposa e chamou para ir com ele. Fomos com a ideia de começar uma nova vida. Passamos por várias cidades, ficamos em abrigo e viemos para o Norte do Paraná”, relata. Em Londrina precisou dormir na rua. “Experiência desconfortável. Já fui usuário de drogas e é uma situação complicada”, define.

Junior Cristiano Scheer mora no abrigo ofertado pela prefeitura: "Quero ser respeitado pelo que sou”
Junior Cristiano Scheer mora no abrigo ofertado pela prefeitura: "Quero ser respeitado pelo que sou” | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

Scheer é transgênero, em que a identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico. A descoberta como homem trans aconteceu aos 13 anos, entretanto, só superou o medo para contar para a família quatro anos mais tarde, conseguindo ser aceito. Recentemente iniciou o tratamento de transição. "Quero ser respeitado pelo que sou”, frisa. Acabou perdendo o convívio com o pai novamente e agora pensa em permanecer em Ibiporã.

Diariamente se desloca até Londrina, para atuar numa cooperativa de material reciclado. Para 2021 o desejo é de prosseguir mudando e crescendo. “Quero me levantar. Reconstruir tudo aquilo que tinha. Fazer uma faculdade, comprar um carro para mim e viver da melhor forma possível”, projeta. O curso já tem em mente e vai ser um gesto de agradecimento. “Queria direito, mas agora penso em assistência social. Pretendo ajudar outras pessoas, assim como fui ajudado.”

INSTITUCIONALIZADO

O acolhimento de moradores de rua em Ibiporã foi instituído em agosto, primeiramente de maneira emergencial. “Criamos um abrigo em um ginásio de esportes em razão da Covid-19. Entretanto, a preocupação era com o que seria deles depois”, explica a secretária municipal de Assistência Social, Ireny Sorge. O executivo decidiu institucionalizar o serviço, com o próprio município assumindo a responsabilidade, já que não houve entidades interessadas no chamamento público.

O local escolhido foi uma casa dentro da estrutura do antigo IBC (Instituto Brasileiro do Café), próximo à entrada da área central da cidade. A edificação foi reformada e organizada, tem capacidade para receber 25 pessoas e está em funcionamento há cerca de dois meses. Atualmente são 23 moradores. “Temos o fluxo, que são aqueles que passam pela cidade. Não deixamos de atender. Neste perfil foram 67 pessoas atendidas. Uma conseguiu sair da situação de rua e voltou para a família”, destaca.

MÃOS QUE ACOLHEM

O trabalho é de valorização da vida, com o suporte de psicólogos, tratamento de saúde e realização de atividades durante o dia, com a colaboração de instituições religiosas. “O papel do poder público é olhar por essas pessoas, que a maioria não enxerga. Vê que está perto, mas não faz nada. Não precisam só de alimento, mas de apoio, valorização humana.”

Nove funcionários prestam serviços na casa, que foi denominada de condomínio pelos residentes. As alas femininas e masculinas são separadas e as tarefas divididas. Nove trabalham fora e retornam durante a noite. “Os empresários viram que é uma mão de obra que pode qualificar. Com isso, os moradores percebem que pode ter qualidade de vida e existe opção fora das ruas. O que falta é alguém para dar as mãos”, reflete. O projeto recebeu o nome de Mãos que Acolhem.

Imagem ilustrativa da imagem OPORTUNIDADES| Chance de recomeço para moradores de rua de Ibiporã
| Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

Por meio de uma parceria com o Governo do Estado a prefeitura consegue recursos para manter a iniciativa, que tem contrapartida. Entre as ideias futuras está a criação de uma horta comunitária para cuidarem. A convivência tem regras, porém, ninguém é obrigado a ir, quando abordado pela equipe, ou permanecer no espaço. “Tem que ser por livre e espontânea vontade. O abrigo não é uma prisão, mas um lar e entendem isso. Vão e voltam sem problema”, aponta a secretária.