Martina Garlet tinha apenas nove meses quando recebeu um coração no Hospital Infantil Sagrada Família, no dia 20 de agosto. O caso teve grande comoção em Londrina e na cidade de origem da família, em Francisco Beltrão (Sudoeste). Foi descoberta aos cinco meses da bebê uma cardiomiopatia restritiva com diagnóstico provável de fibroelastose, uma doença que poderia progredir muito rápido e teria só o transplante como alternativa. “Quando nós ficamos sabendo aos cinco meses que a doença não tem cirurgia ou remédio, nosso susto foi enorme, mas tínhamos fé de que a doença poderia se manifestar mais tardiamente”, conta a mãe Helen Casanova Garlet, 30.

Helen Casanova Garlet e  o marido Sigmar com Martina:  “Eu serei eternamente grata à família catarinense que doou o coração"
Helen Casanova Garlet e o marido Sigmar com Martina: “Eu serei eternamente grata à família catarinense que doou o coração" | Foto: Arquivo Pessoal

Na ocasião, como Martina era assintomática, a família obteve alta. Um mês depois, ela passou a ter dificuldades, quando entrou, no dia 5 de junho, na fila para transplante. “Não é nada fácil você ouvir de um médico que o seu filho precisa de um transplante cardíaco, um órgão vital, mas a gente sempre teve fé em Deus que tudo iria dar certo”, conta a advogada. No dia 27 de julho, pela gravidade da situação, Martina entrou na prioridade da fila. “O nosso DDD é 46, quando tocava o número 43 no meu celular ou no do meu esposo (Sigmar), o coração batia mais forte, o nervosismo aflorava, uma mistura de sentimento”, recorda.

No dia 19 de agosto, a família recebeu a notícia de um órgão compatível ao bebê de nove meses. Uma família catarinense doou um coração com sangue e peso compatível para Martina. “Eu serei eternamente grata, porque perante a dor deles, eles ainda tiveram um gesto tão nobre de solidariedade, que foi dizer sim para nós, para minha filha, chance de salvar a vida dela. Eu os coloco em minhas orações o tempo todo por eles terem pensado no outro nessa hora tão difícil”, menciona. A cirurgia foi realizada no dia 20, infelizmente, a bebê não resistiu ao pós-operatório.

Ainda assim, a família vê a história como um legado. “A doação de órgãos nunca foi tão falada aqui na minha cidade, nas escolas, com quem conversamos, familiares e amigos, acho que a Martina deixou um legado não só aqui, mas em muitos lugares”, menciona.

Imagem ilustrativa da imagem 'Martina deixou um legado", diz mãe de bebê que recebeu coração
| Foto: Arquivo Pessoal

A mãe conta que as pessoas nunca esperam que alguém da família morra, mas que em uma fatalidade, é possível pensar no outro e fazer outra família que tanto precisa feliz. “A doação de órgãos sempre vai estar viva na minha história e do meu esposo. Se Deus nos permitir, nós vamos conseguir por muito tempo levar isso adiante para conscientizar o máximo de pessoas para que seja feito o melhor para tantas pessoas que esperam uma segunda chance”, defende.

FAMÍLIA DEVE CONVERSAR

A campanha Setembro Verde vem com o enunciado: ‘Doação de Órgãos. Fale sobre isso’. A razão é a dificuldade de decisão das famílias após a morte do familiar. Essa é uma das principais causas de recusa de doação, conforme presencia João Vitor Alves Coutinho, enfermeiro coordenador do CIHDOTT (Comissão Intra-Hospitar de Doações de Órgãos e Tecidos para Transplante), da Santa Casa de Londrina.

“É o nosso maior desafio. Quando o paciente não declara em vida é o maior problema, o familiar tende a fazer a vontade do paciente. Eu sempre pergunto para as famílias: ‘Você é um doador?’, eles respondem que sim. ‘Então, a hora de doar é agora, porque depois que vocês morrem, as famílias vão decidir por vocês’”, conta o enfermeiro.

Ele atua diretamente na coordenação dos protocolos de pacientes que sofrem a morte encefálica e que podem ser possíveis doadores. Na sua atividade, o tempo de conscientização é muito curto e precisa ser feito com cautela. “Trabalho em educação em saúde em um curto período de tempo com essa família para que eles entendam a importância disso, mas com o respeito pela decisão”, afirma.

O coordenador explica que ainda há muitos estigmas envolvendo a doação de órgãos a começar pela desmitificação de crenças sobre a morte encefálica. “Ainda é um tabu, isso depende muito do contexto cultural de cada família. O diagnóstico de morte encefálica é bem minucioso e não está associado à doação de órgãos”, comenta.

MORTE ENCEFÁLICA

Por conta disso, o enfermeiro atua explicando o diagnóstico da morte encefálica, como é o processo, como os exames são feitos e orienta que isso é um direito da família e que ela, inclusive, pode fazer a sua última visita ao ente querido. “Essa mesma lei que dá acesso à família ao direito do diagnóstico é a mesma que possibilita a doação ou não de órgãos. Se eu não exponho esse direito, eu tiro a decisão deles”, afirma. Algumas famílias pedem tempo para a decisão.

O coordenador afirma que a conversa sobre doação só ocorre após o diagnóstico da morte encefálica realizado por médico habilitado e que não há risco para o paciente internado. No último ano, a Santa Casa de Londrina teve taxa de conversão em 90% dos casos.

Coutinho explica que ouvir o "sim" de uma família é muito gratificante. “Me sinto muito útil trabalhando com isso, quando eu vejo a família entendendo o processo e dando ‘sim’ à doação, o que só vem de uma boa informação, um bom acolhimento, faz toda diferença. Eu não sei pra onde vão esses órgãos, mas sei que alguém se beneficia deles”, menciona.