A caminhada é o modo mais democrático de se locomover, a condição natural de todos nós que somos, antes de tudo, pedestres. Como a cidade trata os seus pedestres reflete diretamente na qualidade de vida, na sensação de segurança e no futuro da mobilidade urbana que tem proposto uma inversão de rota, buscando oferecer novas ferramentas para que os cidadãos redescubram a importância de ocupar, com as próprias pernas, o espaço urbano.

Imagem ilustrativa da imagem Londrina caminha para uma mobilidade sustentável
| Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

O Calçadão é o maior símbolo da caminhabilidade em Londrina e não apenas pela importância na economia, é quase um bem cultural. A avenida Paraná, já na década de 1930, era o lugar do “footing”, termo pomposo em inglês para as caminhadas de paquera dos moços e moças na época. Vanguardista, como quase sempre, Londrina acompanhou a moda que varreu o Brasil na década de 1970 e foi a segunda cidade brasileira (a primeira foi Curitiba) a inaugurar um calçadão. Foi em 1977 nos 43 anos da Cidade, com um projeto assinado por Jaime Lerner.

acessibilidade

Transformar ruas em áreas exclusivas para a circulação de pessoas é apenas uma das ferramentas de planejamento e políticas urbanas. “O Calçadão é um desses instrumentos de vitalidade urbana, capaz de atrair pessoas heterogêneas e com diferentes tipos de atividades ao longo dos horários, Além de facilitar o acesso e valorizar o comércio e mercado imobiliário, é um ponto de encontro de pessoas, tem instalação de serviços de lazer, cultura e gastronomia", detalha Elisangela Theodoro, arquiteta, urbanista e coordenadora da câmara técnica de arquitetura do Ceal (Clube de Engenharia e Arquitetura de Londrina).

Na opinião da arquiteta, a localização também favorece locomoção dentro de Londrina. “O Calçadão redesenhou a geometria das vias existentes a favor da acessibilidade e segurança viária, fez com que fossem redescobertos potenciais atalhos para o caminhar com passagens e escadarias que são primordiais para garantir que usuários possam optar por diferentes maneiras de se locomover”, analisa.

DEVOLVER OS ESPAÇOS PÚBLICOS

As discussões acerca da mobilidade urbana ainda acontecem dentro de um cenário no qual os automóveis orientam o desenho de cidades, bairros e edifícios, de acordo com Theodoro. “É importante tornar as cidades mais transitáveis para os pedestres, com ações de restrição ao uso do automóvel, principalmente em áreas centrais e históricas. É uma forma de devolver os espaços públicos aos pedestres e melhorar a qualidade de vida além de reduzir as emissões de carbono e de poluentes”, afirma.

E isso vale para todo tamanho de Londrina. “Desenvolver projetos urbanos que atendam as expectativas dos cidadãos em áreas comerciais centrais não é tarefa fácil. É preciso discutir e apresentar propostas que agreguem valor à qualidade de vida urbana com um olhar multidisciplinar, a partir do diálogo com a comunidade, aproximando o urbanismo ao conceito de caminhabilidade e que atenda aos fluxos sazonais de pedestres da região com conforto e qualidade”, comenta. “Os problemas de mobilidade urbana focam principalmente nos transportes, mas é preciso planejar e prever a infraestrutura e integração de todos os outros modais, encorajando as pessoas a combinarem a caminhada, bicicleta, transporte público e automóveis ao longo de todo o trajeto”, continua Theodoro.

Para incentivar isso, ela aposta numa infraestrutura adequada, como bicicletários e vestiários nos espaços de trabalho e pontos de ônibus com informações sobre linhas e horários, bancos para descanso, informação para pedestres com sugestões de rotas e identificação de pontos de atração e uma iluminação orientada ao passeio noturno nas calçadas. “Uma cidade mais caminhável, inclusiva, saudável, democrática, eficiente e ambientalmente responsável”, completa.

Elisangela Theodoro, arquiteta e urbanista: “O Calçadão é um desses instrumentos de vitalidade urbana, capaz de atrair pessoas heterogêneas e com diferentes tipos de atividades "
Elisangela Theodoro, arquiteta e urbanista: “O Calçadão é um desses instrumentos de vitalidade urbana, capaz de atrair pessoas heterogêneas e com diferentes tipos de atividades " | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

RETOMADA DO VERDE PÓS-COVID

Danielle Hoppe é gerente de Mobilidade Ativa do ITDP Brasil, o Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento, com sede no Rio de Janeiro. Ela afirma ser urgente a discussão da transformação do modo que nos deslocamos nas cidades, diante do modelo que temos hoje, que não é sustentável, é muito caro e agride o meio ambiente.

“O Brasil perdeu uma grande oportunidade de focar a recuperação pós-Covid na mobilidade urbana. Muitas outras cidades e países, como a Argentina, Colômbia, Itália e Espanha, estão investindo numa retomada mais verde depois do momento que ficamos meses com as cidades sem carro. Foram investimentos em ciclovias, no aumento de espaço para pedestres", explicou Hope. "E no Brasil estamos voltando piores, com um sistema de transporte público ainda mais deficitário e que as pessoas estão com medo de usar. Com isso, são mais carros nas ruas e a tendência é piorar”, afirma.

Para a especialista, a mobilidade a pé permeia todos os outros tipos de mobilidade e a caminhada deveria ser integrada e entendida como tal, assim como os outros meios de transporte. “Os desenhos de cidade não colaboram, as distâncias são longas e embora existam pessoas que caminham dezenas de quilômetros todos os dias por falta de recursos tem também quem pega o carro para percorrer uma distância que poderia ser feita com dez minutos de caminhada”, completa. Dados apontam que aproximadamente 50% das viagens de carro, dentro das Cidades são de até 5 km de carro. “Algo que de bicicleta seria percorrido em meia hora ou uma hora, a pé”, comenta.

Na opinião de Hope, é preciso inverter a lógica de que a rua não é lugar para pedestre. “Na origem, a rua sempre foi ocupada por pessoas. Com os veículos, no início do século 20, começou o conflito que aos poucos criou a mentalidade que quem estava errado era o pedestre que não sabia se comportar perante o carro, que naquele momento representava o futuro. Ficou essa mentalidade, a de que temos que proteger o pedestre do carro e não controlar o carro, para que ele não seja um perigo para o pedestre. É preciso domesticar o carro e não colocar uma armadura metálica nos pedestres. Além disso, a caminhada não ocupa espaço e não polui”, sentencia.

SEGURANÇA

A segurança das cidades também pode estar aos pés dos pedestres que, quando conseguem ocupar as ruas, promovem um ambiente mais seguro. “Os calçadões se popularizaram nos anos 70, mas acabaram se tornando áreas isoladas nas regiões centrais. As cidades cresceram, vieram os shoppings centers como outro modelo de comercio, uma ruptura que desfavoreceu a mobilidade a pé", explica.

"A questão da segurança pública é real; por outro lado, tem um medo desproporcional, criado a partir da impressão que dentro de um carro, estamos seguros. Hoje sabemos que não é assim”, comenta Hope. É um círculo vicioso, continua: “Quanto menos pessoas na rua, maior a tendência de pequenos delitos. Criamos um espaço sem vigilância natural, que a ativista norte americana Jane Jacobs chamou de os ‘Olhos da Rua’”, diz. Ela explica que quando as pessoas usam o espaço publico, circulam a pé, fazem as suas compras no comércio local quem é estranho ao ambiente e é mal intencionado, se intimida pela vigilância informal. “Quando tiramos o pedestre da rua, isso diminui."

Curitiba foi a primeira cidade brasileira a inaugurar um calçadão
Curitiba foi a primeira cidade brasileira a inaugurar um calçadão | Foto: iStock

ferramenta

O ITDP Brasil desenvolveu uma ferramenta gratuita capaz de medir as características do ambiente urbano determinantes para a circulação dos pedestres, o Índice de Caminhabilidade (iCam, disponível no https://itdpbrasil.org/icam2/), aplicável a qualquer realidade e capaz de apresentar recomendações a partir dos resultados obtidos na avaliação. “Ele serve para as pessoas entenderem que a caminhabilidade está relacionada a outros aspectos urbanos, como o desenho de edifícios que pode, ou não favorecer a caminhada, o sombreamento, segurança pública e etc. Elenca seis indicadores mínimos para uma cidade definir ou avaliar o quanto aquele espaço urbano estimula a caminhada” explica.

REVITALIZAR ÁREAS JÁ CONSOLIDADAS

De acordo com o PlanMob, o Plano de Mobilidade de Londrina, 23% dos deslocamentos são realizados a pé e a projeção de crescimento populacional que prevê um aumento de 120% no número de idosos levou a administração municipal, através do Ippul (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Londrina), a pensar na melhoria das calçadas.

O projeto “Calçada para Todos” exige adequação das calçadas ao padrão da NBR-9050 da ABNT, que determina a acessibilidade, assim como o Rotas Acessíveis, que vai priorizar até 2025 a melhoria de 58 km de calçadas; e até 2030, de mais 33 km em todo o Município. A prefeitura também quer melhorar outros espaços que privilegiam a circulação de pessoas.

Segundo Gilmar Domingues, diretor de Trânsito e Sistema Viário do Ippul, a administração pretende revitalizar e urbanizar locais de lazer já consolidados ao invés de investir em novos espaços que privilegiem os pedestres. “Já existem projetos de revitalização do Centro Social Urbano (CSU), do Córrego Jerimu, no Jardim União da Vitória, dos Lagos Igapó 1 e 2I e do Cabrinha. Tais projetos contemplam ciclovias, priorizam pedestres, práticas esportivas e de lazer”, afirma.

Além disso, Domingues afirma que a legislação urbanística da Cidade, quando determina a implantação de vias marginais nos fundos de vales, estabelece a necessidade de garantir critérios mínimos de conforto e segurança para a caminhabilidade, além de contemplar os aspectos ambientais. “Temos uma topografia que dificulta um pouco a caminhabilidade, mas isso é compensada pelos mais de 80 fundos de vale que possibilitam prática de esporte e lazer, totalmente integrados com a natureza. Londrina é uma Cidade privilegiada”, afirma.

Na opinião de Domingues, um dos melhores exemplos de como uma área revitalizada e recuperada melhora a o seu entorno é o Bosque Central, que passou recentemente por uma grande reforma. “É perceptivo que a caminhabilidade melhorou, assim como a sensação de segurança, a acessibilidade, a iluminação e o aumento do campo visual. As pessoas voltaram a frequentar e isso é muito satifatório”, diz.

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