Futuro é sombrio para os filhos da terra
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 20 de abril de 2000
Roberto José da Silva
De Curitiba
Especial para a Folha
Ele está sendo comido aos poucos. Pelos pés. O menino de 11 anos perde lentamente os dedos que andam descalços pelo chão pedregoso da reserva Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras e Espigão Alto do Iguaçu, a maior da tribo Kaingang no Paraná. Fungos naturais o devastam por causa da miséria absoluta.
Há 11 mil anos seus antepassados chegaram ao Brasil. Andando. No início da colonização do País, pouco depois do Descobrimento, eram 5 milhões. Todos saudáveis. Trezentos mil estavam no Paraná, que hoje abriga 10 mil dos irmãos que vivem em condições parecidas com a sua.
Guaranis e xetás também estão sendo corroídos. Do corpo à alma. Sobraram apenas resquícios de uma cultura que foi rica e, agora, podem ser comprados a preço de banana, em forma de artesanato, nos acostamentos de algumas rodovias.
A alegria dos curumins que se banham na lagoa em Rio das Cobras surge como raio de luz em céu negro de tempestade. Porque o futuro deles é mais do que sombrio. Fazem parte de uma estatística que poderia ser comemorada fossem outras as condições em que se encontram as tribos. Em 1975 existiam 2,5 mil índios nas 18 reservas do Estado. Em 1985, o número dobrou. Agora, 10 mil repartem a pobreza em 85 mil hectares. A área do Paraná, que um dia pertenceu todinha a eles, tem 20 milhões de hectares.
No barraco de madeira a velha índia kaingang toma tererê na cuia. Está coberta por um vestido velho, sujo e furado. No rosto, a marca de uma existência de sofrimento. Na memória, a lembrança marcada pelas histórias contadas pelos antepassados. Quando os jesuítas e sertanistas fizeram os primeiros contatos, no início do século XIX, para a chamada pacificação desta tribo que vivia na floresta e era arredia à civilização, eles andavam nus. No topo da cabeça, uma espécie de coroinha de penas. Arrancavam todos os pêlos do corpo. Costumavam desenhar listras pretas no peito. Era uma forma de proteção contra os maus espíritos. Desconheciam a forma de proteção contra o homem branco. Foram dizimados.
Perderam a força, a dignidade foi atropelada pelo progresso que também devastou a exuberante floresta que cobria todo o Estado. O convívio com o civilizado gerou herdeiros como o adolescente que, num barracão da reserva Rio das Cobras, tenta acompanhar, com sua guitarra elétrica, os acordes de um rock que fere os ouvidos mais sensíveis. Sandálias havainas, bonezinho com bico voltado para trás, ele sonha em ganhar espaço num programa de televisão e, quem sabe, substituir o Fusca e o Opalão da família por uma caminhonete importada Cherokee, homenagem aos seus irmão da América do Norte.
Não há saída, apesar da aparente despreocupação do kaingang que trocou o banho do rio pela imersão no tanque encravado no chão batido da reserva Apucaraninha, em Londrina. O tênis importado está no chão, ele fecha os olhos enquanto massageia o rosto com uma escova de cerdas macias. Sonha com o quê? A Internet? O processo de globalização?
Sob a proteção de imagens de Jesus Cristo, um crucifixo e uma estrela global com as pernas de fora, um dos poucos remanescentes da tribo Xetá prepara o anzol para tentar pescar o alimento do dia. É um sobrevivente. Até a década de 50 sua tribo conseguiu se manter protegida do homem branco. Foram descobertos na Serra dos Dourados, entre os rios Paraná e Ivaí, no Noroeste do Estado. Viviam ainda no período da pedra lascada.
Lascaram-se todos com o progresso dos outros. Foram expulsos a bala de suas choças por colonos e mateiros que abriam caminho para o plantio do café. A maioria morreu com as epidemias contraídas pelo contato com os homem civilizado. O velho sentado na cama espera a sua vez. Não tem mais esperança. Não comemora o descobrimento de um País que sempre pertenceu à sua raça. Espera a morte. Pacientemente. Mas, pelo menos, com os pés inteiros.
Fonte: Assessoria Especial para Assuntos Indígenas do Governo do ParanáEram 300 mil no Paraná. Restam hoje em todo o Estado apenas 10 mil. Com os remanescentes, ficam resquícios de uma cultura que foi rica
Maurílio ChelliO menino de 11 anos perde lentamente os dedos que andam descalços pelo chão pedregosoMaurílio ChelliMaurílio ChelliMaurílio ChelliUm precário casebre foi o que a história reservou (à esquerda). O tererê na cuia e a marca de uma existência de sofrimento (acima). À direita, a barba feita com um barbeador dos tempos atuaisMaurílio ChelliOs acordes de um rock que fere os ouvidos mais sensíveisMaurílio ChelliA alegria dos curumins que se banham na lagoa em Rio das Cobras