Na casa transformada em ateliê, na principal avenida do distrito de Lerroville, região sul de Londrina, o barulho das máquinas é constante. Reflexo do trabalho, que a cada dia vem aumentando e transformou a vida de quatro moradoras da localidade. Elas participaram do curso de confecção, ofertado em 2018 por meio de uma parceria entre a prefeitura, Senai e Sivepar (Sindicato Intermunicipal das Indústrias do Vestuário do Paraná).

Ateliê Retraço Novo: encomendas de aventais e máscaras chegam de várias cidades, inclusive de São Paulo
Ateliê Retraço Novo: encomendas de aventais e máscaras chegam de várias cidades, inclusive de São Paulo | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

“Não sabia nem ligar a máquina, considerava um monstro”, diz,com bom humor, Gislaine Gomes Lopes Mainardes. Até então manicure, se reencontrou na costura e agora enxerga novas e positivas perspectivas. “Foi uma oportunidade interessante de vida; vi que poderia gostar e seguir na profissão”, destaca. Foi justamente isso que aconteceu. Em pouco tempo pegou gosto pelo ofício e não parou mais.

A arte de coser também deu novo sentido para Valdirene Fernandes Carneloci. Após anos de dedicação à casa e ao campo, se motivou a aprender, mostrando que não existe tempo que impeça o recomeçar. “No início (do curso) foi bem desgastante. Era só aprendizado. Várias meninas desistiram e nós insistimos. Nunca havia mexido em uma máquina industrial, fazia reparos simples e em casa mesmo”, conta. Dezessete mulheres integraram a formação.

Foi aproximadamente um ano de luta, segunda elas, para a trajetória na área da costura dar uma guinada e conseguirem gerar renda. “Primeiro ficamos na casa de uma das meninas por quatro meses. Depois, o padre cedeu a sala da igreja, onde permanecemos mais oito meses. Foi um ano sem receber nada. Em agosto do ano passado conseguimos alugar um local, que tínhamos certeza que íamos conseguir pagar”, relembra Carneloci.

“No início (do curso) foi bem desgastante; várias meninas desistiram e nós insistimos", afirma Valdirene Fernandes Carneloci
“No início (do curso) foi bem desgastante; várias meninas desistiram e nós insistimos", afirma Valdirene Fernandes Carneloci | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

PRODUÇÃO

O “divisor de águas” na história das costureiras foi uma grande encomenda de bolsas a partir de materiais reciclados feito por uma cooperativa de saúde, que conheceu o grupo numa premiação, em que recebeu o selo sustentabilidade. O desenvolvimento sustentável, inclusive, faz parte da essência da empresa recém-formada. “Somos um grupo de sustentabilidade, que pega algo que iria para o lixo e faz uma peça nova”, frisam.

Com a pandemia, os serviços se expandiram e estão chegando até a outras cidades. Atualmente, milhares de aventais estão sendo confeccionados, totalizando oito mil. O destino é São Paulo. Nos últimos meses, mais de 22 mil máscaras foram produzidas a pedido de uma empresa. Posteriormente, foram mais três mil acessórios para uma cooperativa de saúde em Londrina. A produção chegou a mil máscaras de pano diariamente.

“Não sabia nem ligar a máquina, considerava um monstro”, confessa Gislaine Gomes Lopes Mainardes
“Não sabia nem ligar a máquina, considerava um monstro”, confessa Gislaine Gomes Lopes Mainardes | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

COLETIVIDADE

O nome dado ao grupo de costureiras de Lerroville resume em poucas palavras o horizonte que se formou dentro e fora do ateliê: “Retraço Novo”. Depois de 15 anos indo para Londrina todos os dias para o serviço de doméstica, Mirian Oliveira de Paula Justino agora tem o trabalho perto de casa. “Acordava às 5h e só voltava 20h. Quando tive minha filha, deixava ela com a minha mãe aos três meses para poder ir a Londrina trabalhar”, relembra.

O clima que permeia todo o serviço junto às maquinas e ao corte é o de união e coletividade, marcas registradas que não aparecem nas peças, mas estão presentes. “Somos praticamente uma família. Ficamos mais tempo aqui do que em casa. Uma já conhece o gênio da outra, o que uma topa a outra vai junto”, afirma Rosineide Massi Carneloci, que desde criança foi agricultora. “O meu forte é o corte. Antes do curso, sabia costura ‘caseira’. Estou muito feliz.”

“Somos praticamente uma família", conta Rosineide Massi Carneloci
“Somos praticamente uma família", conta Rosineide Massi Carneloci | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

FUTURO

Parte dos equipamentos utilizados foi doada, alguns já pertenciam às costureiras e outros adquiridos. O desejo é de que a empresa formada depois da capacitação se expanda, afinal, mais do que materiais diversos, as mulheres vêm costurando sonhos. “Estamos em sintonia e nosso objetivo é crescer. Quereremos um ‘salto jump’, um salto para o futuro. Que consigamos melhorar a cada dia e com mais trabalho”, projetam.

Mirian Oliveira de Paula Justino, que trabalhou como doméstica em Londrina, agora pode ficar perto de casa
Mirian Oliveira de Paula Justino, que trabalhou como doméstica em Londrina, agora pode ficar perto de casa | Foto: Pedro Marconi - Grupo Folha

‘SENSO DE GRUPO E EMPATIA'

O grupo conta com o apoio da designer e estilista de moda sustentável Bianca Baggio, que foi professora no curso de confecção e vestuário, no período em que trabalhava no Senai. De acordo com ela, a evolução vista no projeto no Distrito de Lerroville impressiona. “Com o tempo foram formando preço, modelagem, acabamento. Não é apenas trazer o material para produzir. Elas pegam e sabem o que fazer, trabalhar com as peças. Criam também. Tudo isso para terem autonomia”, valoriza.

Há cerca de 18 trabalhando com oficinas em comunidades, teve a ideia do “retraço” em 2007, durante uma pós-graduação. No entanto, foi somente no distrito que a iniciativa ganhou forma e continuidade. “Quando cheguei, logo me apaixonei (pelas alunas). Tinham a ‘semente’ do trabalho coletivo, senso de grupo, empatia”, pontua. “Não é questão de quantas vezes briga, mas o quando resolve e a capacidade de chegar a um senso comum”, acrescenta.

Auxiliando principalmente na gestão comercial, Baggio ressalta a importância de formar profissionais em áreas afastadas, possibilitando novas conjunturas de vida. “É difícil as mulheres saírem de casa, ficar longe dos filhos. Via essa demanda social. Por isso, o desejo de promover dentro das comunidades o emprego. O grupo é a força das comunidades, das famílias, que caminham nas novas relações de trabalho”, aponta, também reforçando a responsabilidade ambiental na produção e os valores da economia solidária.