A diretora da cooperativa,  Verônica de Souza,  com o look de noiva:   “Esse desfile é uma concretização de um sonho de 10 anos nosso"
A diretora da cooperativa, Verônica de Souza, com o look de noiva: “Esse desfile é uma concretização de um sonho de 10 anos nosso" | Foto: Lais Taine - Grupo Folha

Enquanto ocorria a Semana de Moda de Paris, na França, um grupo singelo em Londrina organizava seu primeiro desfile de moda a partir de peças descartadas como resíduos pela população. Quase uma tonelada de tecido ao mês é recolhida pela Cooper Região, uma das sete cooperativas de coleta de recicláveis da cidade. Em parceria com a UEL (Universidade Estadual de Londrina), e da estilista de moda sustentável Bianca Baggio, esse resíduo ganhou nova forma e um novo ciclo de vida, apresentado em noite de gala, no desfile realizado no sábado (28).

Poucos minutos antes do desfile, Maria Aparecida da Cruz, 62, estava escondida atrás de um painel instalado no palco. Cooperada há nove anos, ela contribuiu na confecção das peças e também foi uma das modelos. “Estou nervosa, mas acho que vai sair tudo bem. Os looks ficaram mais lindos ainda depois que a gente se arrumou e colocou. A gente está se sentindo o máximo”, sorriu. Os 18 cooperados que se dispuseram a desfilar os 23 looks receberam produção com maquiagem e penteado.

Quando ela chegou na passarela, os convidados aplaudiram, como fizeram com cada um que entrava. Eles comemoravam os 10 anos de cooperativa com um jantar em buffet. Matheus Alves, 28, auxiliar administrativo da cooperativa, foi o primeiro. Ele entrou com um modelo confeccionado com sacos de lixo. “Foi uma sugestão minha. O desfile conta um pouco a nossa história, então a lona iria dizer melhor como a gente começou. A cooperativa é uma junção de 14 ONGs, a maioria ficava instalada em fundo de vale, embaixo de uma lona. A gente achou justo mostrar de onde a gente saiu e para onde a gente está indo”, falou dias antes do desfile. Na passarela, ele desfilou o sorriso orgulhoso de quem reconhecia a importância do seu papel.

O entusiasmo do processo palpitava no coração até dos mais tímidos. Rosana Borges, 42, gerente de vendas da Cooper Região, costurou e aplicou crochê nas peças, mas também se dispôs a desfilar. “É superação das dificuldades, porque eu sou uma pessoa tímida, vai ser difícil, mas é para um bem maior, porque a gente acredita que esse trabalho de separação de roupas, reciclagem, pode ser uma segunda linha de produção que a gente pode trabalhar”, afirmou na semana anterior da apresentação. Não bastasse uma, naquela noite, Borges entrou duas vezes na passarela para apresentar dois looks diferentes.

"O desfile conta um pouco a nossa história; a gente achou justo mostrar de onde a gente saiu e para onde a gente está indo”, conta Matheus Alves
"O desfile conta um pouco a nossa história; a gente achou justo mostrar de onde a gente saiu e para onde a gente está indo”, conta Matheus Alves | Foto: Lais Taine - Grupo Folha

SONHO

A diretora financeira e assistente social, Verônica de Souza, acompanhou o projeto desde o início. “Esse desfile é uma concretização de um sonho de 10 anos nosso. A gente sempre conversava de fazer um desfile com as roupas que vinham, porque tem muita coisa boa, novas, que as pessoas descartam”, contou. No início do ano, ingressantes no curso de design de moda, da UEL, aplicaram trote solidário na cooperativa. Foi quando a diretora teve a oportunidade de contar seu desejo. Imediatamente, a mensagem foi repassada a professores e estilista que compraram a ideia. “Fizemos a primeira reunião, contei sobre minha ideia, eles levaram para dentro da universidade e abraçaram. Disso saiu o Projeto Catamoda”, explicou.

CATAMODA

O Catamoda é um projeto de extensão vinculado ao grupo de pesquisa DeSIn (Design, Sustentabilidade e Inovação), do departamento de Design, da UEL, coordenado pela professora Suzana Barreto Martins e Cláudio Pereira Sampaio. “A Verônica falou com brilho nos olhos de que o sonho deles era fazer um desfile com as roupas que eles recebiam ali e por que não fazer?”, questionou a professora. Para a viabilização do projeto, eles convidaram a estilista de moda sustentável de Londrina, Bianca Baggio, para o auxílio na confecção das peças com grupo de alunas da universidade.

PROCESSO

Algumas cooperadas se dispuseram a trabalhar na confecção, elas tiveram que aprender a trabalhar nas máquinas de costura. Para isso, iam para a universidade três tardes por semana para construir os painéis, pedaços de tecido que era desmontado das peças originais e reconstruídos para ganhar nova forma. Os moldes ficaram sob responsabilidade da estilista. “A primeira conversa foi para descobrir a mensagem que eles queriam passar. São 10 anos de cooperativa, com uma história de luta, vitória, de trabalho na união de forças para superar uma necessidade em comum que é a geração de trabalho e renda. Quando eles começaram, o trabalho não era visto como uma peça fundamental de um processo de uma sociedade sustentável, ele ficava à margem, assim como esse material, então eu quis trazer essa história”, sugeriu.

O desfile começou com um modelo em saco plástico, mas evoluiu a partir de peças reconstruídas, com a inclusão de sapatos, bolsas e acessórios também encontrados nos recicláveis. No último look uma noiva, desfilado pela diretora financeira da cooperativa. Quando todos retornaram à passarela aplaudidos, deixaram o sorriso da realização de um trabalho bem feito. “Hoje, esses trabalhadores sentem orgulho do que fazem, porque têm dimensão da importância que é a logística de reciclagem de materiais na sociedade que a gente tem hoje. Então, qual é a mensagem que fica? Do empoderamento, da autoestima curada, de construir a própria história”, afirmou Baggio. A Cooper Região tem 122 cooperados, parte deles se dispôs a participar do evento. As modelos foram produzidas pelo Instituto Embelleze.

O que era um desejo se tornou oportunidade. O desfile das peças produzidas a partir do tecido descartado como lixo gerou compreensão de que aquela poderia ser uma nova frente de trabalho na cooperativa. “O nosso lixo, que não é lixo, é muito rico. Vem coisas muito boas. Esse projeto Catamoda abriu outro viés na cooperativa para o reaproveitamento melhor dessas roupas que são descartadas com o reciclado”, comenta Verônica de Souza, diretora financeira da Cooper Região.

A ideia é conseguir parceria para o desenvolvimento de um novo processo envolvendo tecidos dentro da cooperativa. “Eu acredito que esse desfile vem para abrir um novo horizonte, um outro campo que a cooperativa tem para trabalhar. As catadoras demonstraram muita habilidade com as máquinas, com a costura, tiveram facilidade de aprender que surpreendeu os professores, então, eles enxergaram outros potenciais que podem ser trabalhados e a gente poder ter uma grande oficina, mais uma frente de trabalho, a gente está bastante otimista”, conta.

Roupas jogadas fora ganharam uma nova forma e um novo ciclo de vida
Roupas jogadas fora ganharam uma nova forma e um novo ciclo de vida | Foto: Lais Taine - Grupo Folha

De acordo com o professor do departamento de Design da UEL e um dos coordenadores do Catamoda, Cláudio Pereira Sampaio, há muito a ser realizado nessa área. “A gente começou fazendo artesanato e depois veio a pesquisa e criação de novos materiais. Esse é o fechamento de um ciclo, mas já está começando outro, tem muita coisa para fazer, um novo sistema de coleta de resíduo vai ser essencial”, afirma. Ele conta que a proposta é poder trabalhar com educação ambiental e capacitação de também outras cooperativas.

Para a professora Suzana Barreto Martins, a quantidade de material recolhido para o desfile foi surpreendente. “Quase uma tonelada por mês, roupas até com etiqueta, sem uso”, comenta. Por isso, o projeto agora pretende ter novos caminhos. “A ideia é continuar com a Cooper Região em um projeto muito maior que é a criação de um banco de resíduos têxteis na própria cooperativa para realmente ter um destino correto, porque todo esse material vai para os aterros sanitários e eles entopem os dutos de chorume, diminui o clico de vida dos aterros, é um problema sério. As pessoas não têm noção de tudo que acarreta”, argumenta.

ELETRODOMÉSTICOS, MOBÍLIA E LIVROS

Além de roupas, faz parte da rotina da Cooper Região receber eletrodomésticos, mobília, livros. “A questão do descartável não ficou só nos materiais, como copo, prato, foi além. Hoje, infelizmente, estamos tão consumistas que a gente usa, não gosta mais do modelo, não é da cor da moda, descarta e vai para o lixo”, comenta a diretora financeira da cooperativa, Verônica de Souza. Ela conta que é comum os cooperados encontrarem móveis, livros e eletrodomésticos em bom estado. “O que antes a gente consertava, agora vai para o lixo.”

Essa não é uma exclusividade da Cooper Região, outras cooperativas da cidade passam pela mesma situação. São tantas roupas e tecidos recolhidos, que não conseguem fazer a destinação que acreditam ser a melhor. “O problema maior são as roupas, porque vem bastante. Todo dia tem. Uma vez a gente encheu um quarto em três dias para doação. A gente estava doando para uma instituição, mas agora eles não precisam mais, estão cheios e a gente não tem o que fazer, tem que descartar”, conta Francisco da Silva, diretor da Ecorecin.

Na maioria dos casos, eletrodomésticos quebrados são vendidos como sucata e livros são vendidos como papel, mas roupa e madeira são itens difíceis de encontrar destinação sustentável. Sandra Araújo da Silva, presidente da Coocepeve, conta com a sorte de ter um marceneiro vizinho do barracão para distribuir as madeiras maiores. “Teve época que a gente fazia bazar do artesanato, mas acaba tendo um retorno tão baixo para nós recicladoras, que não demos continuidade. Teria que ser um projeto que casasse com nosso tempo”, afirma. As roupas encontradas no local são destinadas a duas igrejas que trabalham com dependentes químicos.

Os livros que eram encontrados na Cooper Refum eram vendidos aos sebos da cidade, mas quando não são aceitos, são vendidos como papel. A presidente, Selma Gonçalves, conta que é raro receber eletrodoméstico que funcione, mas com as roupas ela mesma se propõe a doar para creches que fazem bazar para levantar recursos. “Vem bastante roupa, umas três ou quatro caixas por semana, muitas em mau estado que a gente tem que descartar. Se tivesse uma firma que fizesse estopa seria uma grande solução, ajudaria mais a renda da cooperativa, porque também tem muito tecido velho que não dá para doar”, sugere.