“Acredito que a gente carrega muita energia e eu quero que as bonecas só transmitam coisas boas. Alegria”, comenta Luciane dos Santos
“Acredito que a gente carrega muita energia e eu quero que as bonecas só transmitam coisas boas. Alegria”, comenta Luciane dos Santos | Foto: Micaela Orikasa - Grupo FOLHA

O olhar cuidadoso, o afago nos cabelos, o carinho ao manusear cada boneca. O encontro com a bonequeira Luciane dos Santos, 50, na zona oeste de Londrina, é daqueles que enchem o coração e nos provocam a refletir enquanto seres humanos.

Formada em ciências sociais na UEL (Universidade Estadual de Londrina), Santos participou de um projeto de extensão na área de relações raciais e o conhecimento lhe abriu os olhos sobre violação de direitos, racismo estrutural e todas as demais facetas da violência. Com essa nova bagagem de vida, Santos conta sua história abertamente para encorajar aqueles que estejam em sofrimento e sonha, através de suas bonecas, em levar todo esse aprendizado para meninos e meninas.

“Quando eu compreendi que o racismo é estrutural, eu fiquei de certa forma aliviada. Isso fez toda a diferença para eu entender que nada do que me aconteceu foi culpa minha. E assim, surgiram as bonecas”, diz.

Dentro do projeto acadêmico, Santos visitou muitas escolas para conversar com crianças sobre as formas de violência, especialmente o racismo. “Eram meninos e meninas de 7, 8 anos e a abordagem tinha que ser diferente. Não apenas ir lá e falar de violência. Como o artesanato sempre foi algo que eu tinha certa habilidade, comecei a fabricar bonecas para que as crianças se enxerguem através delas, se sintam bonitas. É representatividade”, explica.

Santos destaca que no Brasil, onde 52% da população são autodeclarados pretos ou pardos, a fabricação de bonecas negras é mínima, em torno de 6%. “Por que não tem bonecas negras?”, questiona, incomodada. “Essa é uma questão que pretendo estudar mais a fundo, para um mestrado. Será que o racismo suplanta até mesmo a questão econômica?”.

COSTURANDO UMA VIDA NOVA

Santos tem trabalhado com encomendas e sempre pede uma foto da criança para se inspirar na confecção da boneca(o). Nos dias em que não acorda emocionalmente muito bem, a artesã prefere deixar a produção de lado. “Acredito que a gente carrega muita energia e eu quero que as bonecas só transmitam coisas boas. Alegria”, comenta.

Os motivos que levam Santos a encarar dias mais nublados não são poucos. Sua história traz , em diferentes fases da vida, um ciclo de violência. De todos os tipos. Ao sofrer racismo e bullying na escola, Santos deixou a sala de aula aos 12 anos e foi trabalhar como diarista e babá. Ao sofrer assédio do marido da mulher que a havia contratado, resolveu fugir com o dinheiro da diária e a roupa do corpo.

Ela viveu em situação de rua por dois anos, em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. A ideia de voltar para casa, aos 15 anos, não lhe parecia o melhor caminho, já que sofreu abusos no ambiente familiar. “Conheci o pai dos meus dois filhos. Ele me tirou das ruas, mas esse fato fez com que ele se sentisse meu dono. Foi então que meu relacionamento se tornou abusivo. Eu não podia sair de casa, trabalhar e nem estudar. Eu ficava trancada em casa”, lembra.

Aos 20 anos, com o segundo filho recém-nascido e ignorado pelo pai, Santos retornou a Londrina e passou a viver com a irmã. Ela arrumou dois empregos e assim conseguiu alugar uma casa. Casou-se novamente, teve outros dois filhos e fez acompanhamento psicológico e psiquiátrico. “A vontade de voltar a estudar sempre esteve comigo, mas foram as sessões de terapia que me deram o empurrão que eu precisava. Voltei para a mesma escola que eu abandonei ainda criança e dividi a sala de aula com meu filho”, conta, sorridente.

Imagem ilustrativa da imagem Conheça a história da bonequeira londrinense
| Foto: Micaela Orikasa - Grupo FOLHA

“Zuri”, nome escolhido para a marca de bonecas significa beleza em língua africana. “Voltar a estudar foi libertador para mim. Foi um processo de cura, que me fez entender que falar abertamente é uma das formas de combater essas violências. O caminho que escolhi para esse combate tem formas, vestidos coloridos, são lindas e meigas”, diz.

SERVIÇO: As bonecas Zuri podem ser encomendadas pelo telefone: (43) 98477-3746 ou pelo perfil luu.bonecas (Instagram).