Casa de pioneira de Londrina é doada para Toca de Assis
Familiares conseguiram realizar desejo de Thereza Franzin seis anos após sua morte; organização Toca de Assis atende pessoas em situação de rua
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Familiares conseguiram realizar desejo de Thereza Franzin seis anos após sua morte; organização Toca de Assis atende pessoas em situação de rua
Bruno Souza - Especial para a FOLHA

Um pouco antes de falecer, Thereza Franzin, que já entrava na casa dos 90 anos, expressou aos familiares um desejo um tanto quanto incomum. Ela, que era viúva e não tinha filhos, pediu para deixar o lar que conquistara com tanto esforço para aqueles que mais precisavam. O pedido foi respeitado e, agora em 2024, a propriedade - que fica no conjunto Ruy Virmont Carnascialli, zona norte de Londrina - foi doada à caridade.
Quem conta a história é a responsável legal por administrar os bens de Thereza, a sobrinha Madalena Franzin, 67. Segundo ela, a casa sempre foi o porto seguro da idosa, o que reforça ainda mais o gesto de amor ao próximo.
Em cada canto da propriedade, é possível notar nos detalhes a assinatura de Thereza. As flores, que eram cultivadas por ela, ainda insistem em sobreviver em meio ao mato, que por mais que seja podado de tempos em tempos, é reflexo da ausência de moradores no local há cerca de seis anos.
A busca por um lar estável sempre foi prioridade na história da idosa. Ela nasceu em 1º de março de 1926 em Descalvado (SP) e chegou a Londrina com 8 anos, em 1934, juntamente com os pais Antonio Franzin e Josephina Padovan, imigrantes da Itália. Inicialmente foram morar no centro de Londrina, na avenida São Paulo. Cerca de dois anos depois, mudaram-se para um sítio no Distrito Espírito Santo, lugar onde fizeram história ao morarem na propriedade assinada pelo engenheiro e primeiro prefeito de Londrina Willie Davids. O sítio foi vendido na década de 1970.
Aos 32 anos, casou-se com Manoel Alves Teixeira, jardineiro aposentado da UEL (Universidade Estadual de Londrina). O casal adquiriu residência na região do Bela Suíça, mas se estabeleceram no Parque Guanabara (zona oeste), local em que Thereza se tornou viúva.
Contra a sua vontade, precisou sair do lar que construíra com Manoel no início dos anos 2000. Desde então, transformou a casa do Carnascialli em sua nova residência.

TROCA DE CASAS E ASILO
A independência sempre marcou a vida de Thereza. Muito bem relacionada com a vizinhança, via nos moradores da rua companheiros que, por muitas vezes eram cuidados pela idosa, mas também retribuíam o afeto. Porém, com o avanço da idade, não conseguiu mais viver sozinha.
"Ela tomava conta da casa quando veio para cá e o meu sobrinho vinha dormir com ela de noite, para não ficar sozinha. Ela fazia tudo, mas a gente dava assistência com compras. Só que se passaram alguns anos e ela teve um derrame. Nós colocamos uns conhecidos para morar na frente e construímos uma casinha no fundo. Eles davam toda a assistência para ela em troca do aluguel", explicou a sobrinha, que é professora de Educação Física aposentada do estado do Paraná.
A família que auxiliava a idosa precisou sair da casa e a única alternativa encontrada pela família foi levá-la para um asilo e a casa foi alugada. "Ela já estava numa condição em que já não tomava banho sozinha", resume Madalena, informando que os últimos anos de vida a tia passou no asilo São Vicente de Paulo.
Juntamente com o marido, o piloto aposentado da FAB (Força Aérea Brasileira) Humberto Sérgio Cavalcante Marcolino, 68, a professora assumiu o papel de gestora dos bens da tia. "O dinheiro que sobrava da casa, fazíamos manutenção, reforma e comprávamos as coisas que precisava, como medicação, iogurte, pagávamos exames particulares e ainda assim sobrou dinheiro."
Madalena e Humberto foram os familiares mais presentes nos últimos anos de vida de Thereza. Foi a professora aposentada quem levou a idosa para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) no dia do seu aniversário, 1º de março de 2018, um dia antes dela falecer. "Ela estava consciente. O médico deu a medicação e no outro dia, infelizmente ela morreu", relembrou.
HERANÇA PARA A CARIDADE
Foi no asilo que Thereza se manifestou pela primeira vez com relação à doação da casa. "Elas [irmã de Thereza e sobrinha] foram fazer uma visita. E eu perguntei na presença das duas: 'tia, o que a senhora gostaria de fazer com a sua casa quando a senhora não estiver mais aqui?'. Questionei se queria deixar para a família, mas ela ficou em silêncio. Perguntei se queria deixar para a caridade, e ela prontamente concordou", disse a sobrinha.
Mesmo com o desejo explicitado em vida, após a morte da idosa a família precisou fazer um inventário, pois a justiça não reconheceu a vontade de Thereza e ordenou uma investigação para procurar parentes, o que atrasou a doação em cerca de seis anos.
"Ela [a juíza] pediu um documento oficial de todos os herdeiros, ressaltando que abririam mão da casa. Foi uma loucura, porque eu tenho primos morando no Maranhão e em diversas outras partes."
O desejo de deixar a herança para quem nem conhecia não foi uma tarefa fácil para os familiares, incumbidas da missão, porém foi realizado em setembro, quando aconteceu a entrega das chaves para a organização Filhos da Pobreza, da Fraternidade Toca de Assis. O terreno tem cerca de 200 metros quadrados e vale cerca de R$ 200 mil.
LAR FRATERNO
A Toca de Assis conta hoje com 13 idosos - todos ex-moradores de rua - que são cuidados e sustentados por meio do voluntariado. Eles também atendem toda terça-feira cerca de 100 moradores de rua, distribuindo mantimentos.
"Todos [os 13] estão com a gente há mais de dez anos e nem todos são de Londrina. Vão ficar conosco até o último dia de vida. Eles têm toda a assistência - financeira, médica e psicológica - necessária", ressaltou Irmão Domingos, 56, gestor do espaço.
O local é custeado pelo voluntariado. E recebe idosos com idade mínima de 60 anos. Para a casa de Thereza, o esperado era formar um república para servir como casa de passagem para pessoas em recuperação de vícios, projeto que esbarrou em problemas burocráticos de zoneamento.
"Aqui, a ideia inicial era uma república para ex-moradores de rua que estão saindo de casa terapêutica. Quando eles saem, a família geralmente não os aceita, e voltar para onde eles se viciaram é pior. Por isso, aqui seria uma casa de transição até se estabilizarem", explicou o religioso.
Eles descobriram a impossibilidade há cerca de um mês, no processo de transferência do imóvel. Já havia duas pessoas na fila para ocupar a casa. Agora, vão alugar a casa e o dinheiro será destinado para os necessitados. "Não posso usar o dinheiro da casa para reformas, por exemplo. Tem que ser diretamente para um trabalho com os pobres", enfatizou.

