Londrina se tornou a cidade que é hoje graças ao trabalho de inúmeras pessoas que aqui vivem ou já viveram. E uma parcela da população que faz parte desse processo permanece anônima. Ninguém duvida que os automóveis têm um papel crucial para o desenvolvimento local, mas poucos conhecem aqueles que mantêm esses veículos rodando pelas vias de Londrina. Uma dessas pessoas é Valdyr Nunes Dourado, conhecido como Dourado do Baiano, borracheiro que chegou a Londrina em 1958.

Valdyr Dourado: "Na minha vida aprendi que é preciso tratar bem as pessoas e não fazer distinção entre elas"
Valdyr Dourado: "Na minha vida aprendi que é preciso tratar bem as pessoas e não fazer distinção entre elas" | Foto: Roberto Custódio

Dourado nasceu em Irecê (BA) em 1936. Ele relata que sua família ficou sabendo da fama do Norte do Paraná, da fertilidade de seu solo e das plantações de café. O primeiro a vir foi seu tio, que trabalhava na roça em Maringá (Noroeste). “Meus pais, eu e meus irmãos chegamos depois, em 1949 para também trabalhar na roça. Eu ainda era um menino”, disse à Folha. A entrevista com Dourado foi realizada antes do início da pandemia de coronavírus.

No início Dourado também ficou na lavoura, ajudando seus pais e seus irmãos. Mas em 1956, aos 20 anos, a necessidade de obter ganhos melhores logo o fez procurar um novo ofício. “Aprendi a profissão em Maringá com Tiago Martins de Melo, que foi um dos primeiros borracheiros da cidade", disse, lembrando de algumas particularidades da época. "O maior pneu era o F8. Para encher a câmara usava apenas uma bomba manual. Isso levava três horas. Para vulcanizar era um pistão de caminhão cheio de óleo diesel que usávamos para esquentar e queimar embaixo”, relembra.

Seu destino parecia ser ficar em Maringá, até o dia em que conheceu uma moça de Londrina, Onéas. Ela foi participar de um encontro religioso em Maringá. “Assim que eu a encontrei disse que casaria com ela. Eu estava com 22 e ela estava com 17." Sua paixão por Onéas o fez mudar para Londrina.

JOÃO MILANEZ

Ele começou a trabalhar como borracheiro em Londrina no dia 1º de dezembro de 1958, em um posto que ficava na esquina da rua Tupi com a avenida Paraná. “O primeiro pneu que eu consertei foi do jipe do João Milanez (fundador da Folha de Londrina). Não me esqueço até hoje dele falando: Baiano, arruma direitinho esse pneu”, relembra. Foi o primeiro contato de uma amizade que durou anos. “Ele era muito legal com a gente. Quando ele morreu não fui lá porque não aguentei de emoção. Ele era muito carismático”, revela.

Era uma época em que Londrina não possuía vias asfaltadas. Mesmo no Centro as ruas eram pavimentadas com blocos de paralelepípedos. Nas estradas da região havia muita lama ou pó e as pedras que faziam os rasgos nas câmaras de ar dos veículos. “Além disso, aqui havia muitas serrarias. Os caminhões carregavam toras e durante o transporte caíam muitos pregos que eram utilizados nas construções. Isso fazia com que a câmaras dos pneus furassem. Em 1958 e 1959 foram os anos que eu mais trabalhei”, relembra Dourado.

'CIDADE BEM PEQUENA'

“A cidade era bem pequena. De prédios havia apenas o edifício São Jorge, o edifício Luís Manella e o edifício Santo Antônio. Na época ninguém esperava que Londrina crescesse tanto”, recorda-se o borracheiro Valdyr Dourado.

Questionado se sente saudade de algo daquela época, ele diz que não. “Passei fome, necessidade. Hoje sinto prazer grande em pegar uma picanha bem caprichada no supermercado e comer com a minha família. No passado eu não tinha nada disso. Eu vou lembrar de coisa ruim?", questiona, para depois acrescentar. "A gente fazia de tudo. A água era de poço. Não havia esgoto, tinha que cavar uma fossa. A eletricidade era bem fraquinha”.

Dona Onéas concorda. “A gente usava fogão a lenha. A primeira geladeira foi comprada em 1965; Deus abençoava para que as coisas não estragassem.Tínhamos que comprar tudo fresco. Naquela época passavam carrocinhas vendendo verduras na porta da gente. O leite também era assim, entregavam na porta. Mas tinha que ferver bem, porque ele vinha cru”, destaca.

Valdyr Dourado e a mulher Onéas: amor à primeira vista
Valdyr Dourado e a mulher Onéas: amor à primeira vista | Foto: Roberto Custódio

Depois de trabalhar no posto, Dourado atuou por 30 anos em empresas do ramo, se especializando no conserto de pneus de caminhões e tratores. “Eu era magrinho, mas era danado. Os pneus eram pesados, mas eu consertava facilmente. O mais pesado que peguei foi o 1122, que era do Alfa Romeo. Eu não sei quanto pesava, mas eu montava muito. Fora isso tinham os pneus de tratores da Paraná Castro, que também eram bem pesados. O baiano aqui sozinho carregava o pneu e só jogava em cima da caminhonete”, diz, orgulhoso.

DE ÁLVARO GODOY A MILTON GUIMARÃES

Em sua carreira, o borracheiro Valdyr Dourado conviveu com pioneiros da cidade, como os fazendeiros Álvaro Godoy e João Bule, o ex-presidente da Acil Olavo Garcia Ferreira, o empresário Luiz Rosseto, o construtor Caetano Vezozzo e o pioneiro no ramo de cinemas Antônio Camioto. “Também conheci todos da família Fuganti: o Júlio, o Mário e o Elias. Conheci o deputado Hermes Macedo e também o governador Moysés Lupion, que levava as viaturas para abastecer no local em que eu trabalhava”, detalha.

Outra pessoa de quem se recorda bem é Lucilla Ballalai, que tinha uma personalidade que ele qualificou como bem exigente. “Ela era brava”, resumiu. Outro frequentador assíduo de sua borracharia era o delegado Achilles Pimpão Ferreira.

Ele relembra que naquela época o médico e ex-vereador Milton Guimarães tinha um Chevrolet rabo de peixe que tinha pneu sem câmara, quando quase todos os carros só circulavam com pneus com câmara. “Mas quem sabia consertar pneu sem câmara naquela época? Chamaram o baiano aqui e eu consegui consertar”, diz, orgulhoso.

Ele conta que em todos esses anos de carreira se acidentou em três oportunidades, quando os pneus estouraram no seu rosto. Em uma das vezes foi tirar o pneu de um truck de Alfa Romeo e, quando afrouxou as castanhas, elas escaparam e o pneu passou por ele. “Quebrou meu nariz e vários ossos da face."

Dourado permanece em atividade na rua São Vicente, 331, no imóvel que também é a sua residência. “Eu e minha mulher compramos essa propriedade economizando, fazendo o bem. Na minha vida aprendi que é preciso tratar bem as pessoas e não fazer distinção entre elas. Procurei sempre ser humilde, honesto e sincero. Hoje o que me dá mais prazer é servir a Deus.”