Quase três mil quilômetros separam Cambé (Região Metropolitana de Londrina) de Gravatá, cidade de 85 mil habitantes no interior de Pernambuco. Mas a distância territorial não impediu que dois jovens, moradores destes municípios, planejassem desde dezembro de 2021 – segundo a Polícia Civil - o ataque a tiros que terminou com a morte de um casal de estudantes no colégio estadual Professora Helena Kolody, no dia 19 de junho.

O assassino, de 21 anos, – que posteriormente foi encontrado morto da cadeia, numa suspeita de suicídio –, e o rapaz, de 18, apontado pela investigação como mentor intelectual, nunca se viram pessoalmente. No entanto, difundiram ao longo de meses discurso de ódio e criminoso nas redes sociais usadas pela maioria da população, nas novas plataformas, como o Discord, e também no submundo da internet, a deep web, sem que fossem percebidos ou advertidos antes da tragédia.

Episódio que volta a expor o limite da liberdade de expressão e o quanto as big techs têm ou não responsabilidade por servir de palco para difusão deste tipo de conteúdo. “Todos têm direito à proteção da intimidade, privacidade e imagem. Mas quando cometemos um ato criminoso, essa proteção pode ser sobrepujada mediante processo judicial ou investigação, que autorize a quebra de sigilo para identificação dos autores ou produção de provas. Nenhuma liberdade dá direito ou garantia para que as pessoas cometam crimes na internet”, alerta o advogado Fernando Peres, especialista em direito virtual.

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No caso das empresas que detém as plataformas digitais, a lei brasileira encontra dificuldades para punir. “Estamos lidando com grupos privados e as plataformas não têm filtro sobre o que é postado. Não existe responsabilidade. A única excepcionalidade é o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que prevê punição se não for cumprida decisão judicial para tornar um conteúdo indisponível ou a notificação extrajudicial, por exemplo, em uma situação de nudez, e não tirar do ar a publicação”, explica Patrícia Sardeto, professora do curso de direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) campus Londrina e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito e Inovação Tecnológica.

REGULAÇÃO PARADA NO CONGRESSO

A discussão sobre a regulação das mídias digitais no Brasil é tratada com ares de polêmica e está parada no Congresso Nacional, muitas vezes tratada sob a ótica da ideologia. “A regulação pode desempenhar um papel importante na inibição de ações violentas praticadas ou gestadas na internet. O uso de ferramentas de moderação e análise de conteúdo é fundamental para evitar a disseminação de publicações ofensivas que incitem crimes ou espalhem desinformação por meio de notícias falsas. As plataformas possuem tecnologia suficiente para detectar e moderar conteúdos de ódio ou incitação ao crime, sem que isso resulte em censura ou restrição indevida da liberdade de expressão”, ressalta Peres, que coordena o projeto “Segurança na Rede”.

A advogada Patrícia Sardeto afirma haver a necessidade de uma regulação para conter abusos e trazer de forma clara e específica as punições, entretanto, pondera que não é uma tarefa fácil. “Não tem como regular tudo, porque não existe um controle único. Temos projeto de lei também em relação ao desenvolvimento de inteligência artificial e é outro ponto que merece atenção na discussão. Corremos o risco de participar de um grupo de troca de mensagens sem perceber que é um perfil fake e que pode ser enviesado com discurso de ódio.”

'ALIMENTAR ABSURDOS'

“Existe uma necessidade de regulamentar para que as plataformas colaborem informando quando identificam esse tipo de evento. Não pode uma plataforma ter liberdade tão grande para alimentar absurdos como este (que aconteceu em Cambé). Nos Estados Unidos, as plataformas são obrigadas a comunicar para o Estado. No Brasil, quando acontece um evento desse, temos dificuldade de buscar informação. A resposta rápida torna-se mais difícil devido a essa dificuldade criada”, critica o delegado-chefe da 10ª Subdivisão Policial de Londrina, Fernando Amarantino Ribeiro.

Durante entrevista sobre o caso de Cambé, Ribeiro observou que o atirador de 21 anos tinha comportamentos distintos junto à família e na internet. “Ele trabalhava com o pai no campo, mas paralelamente mantinha essa outra postura. É como se fosse uma vida real e outra virtual”, definiu.

NAS CORTES SUPREMAS

Um julgamento que ocorreu em maio na Suprema Corte dos Estados Unidos, e que era esperado por especialistas e governantes em todo o Mundo para servir de balizador para futuras decisões, terminou com vitória das plataformas, que eram acusadas de terrorismo ao não vedarem conteúdos pró-Estado Islâmico.

O STF (Supremo Tribunal Federal) deverá julgar nos próximos meses a responsabilidade das redes sociais por conteúdos ilegais publicados. O tema estava pautado para maio no plenário, mas teve a análise adiada a pedido dos relatores, os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.

“É uma discussão que a sociedade civil precisar fazer, nos espaços de governo, escolas, universidades, mercado de trabalho. Por mais que uma decisão venha do judiciário, esperamos que os legisladores se debrucem sobre este tema, com um comportamento mais conducente, e reforme o Marco Civil da Internet”, cobra advogada Patrícia Sardeto

‘EDUCAÇÃO DIGITAL’

Mais do que regras, o debate envolve a conscientização. “A educação digital das crianças e adolescentes é de extrema importância na sociedade atual. A educação digital visa capacitar os jovens a fazerem um uso seguro, ético e responsável da tecnologia, garantindo que eles estejam preparados para enfrentar os desafios e riscos do ambiente digital. O combate ao discurso de ódio nas redes sociais envolve não apenas a existência de leis e regulamentações adequadas, mas também uma efetiva aplicação e fiscalização dessas normas”, frisa Fernando Peres.

Sem responsabilidade: advogada critica o fato de as plataformas não terem filtro sobre o que é postado
Sem responsabilidade: advogada critica o fato de as plataformas não terem filtro sobre o que é postado | Foto: iStock

‘MUDANÇAS BRUSCAS DE COMPORTAMENTO PRECISAM SER AVALIADAS’, ALERTA PSICÓLOGA

Com as novas gerações crescendo imersas na tecnologia, levar o mundo real para o virtual acaba sendo um caminho para demonstrar os sentimentos, muitas vezes de forma oculta. “Na vida real, sentar, conversar, olhar no olho e falar o que sente se torna mais difícil. Nas redes sociais, muitas vezes, e principalmente na adolescência e juventude, a pessoa se sente mais livre para expressar os sentimentos reais e encontra um nicho em que é acolhida”, pontua a psicóloga Amanda Dias.

É com esta barreira - que vai além da física - que os pais também têm que aprender a lidar para acessar os filhos e intervir no tempo correto. “Os pais precisam ter um na rede do outro, ver o conteúdo que o filho consome, comentários, para que qualquer comportamento que tenha mudado em curto período de tempo seja abordado num diálogo aberto e que traga para a vida real”, orienta.

A especialista em psicanálise clínica destaca que isso não significa que as famílias devam negligenciar a atenção no dia a dia do filho no contato da vida real. Pequenas atitudes podem ser sinal de alerta. “Se o adolescente tinha um comportamento e de repente passa a ter outro. As mudanças bruscas precisam ser avaliadas e notadas pelos responsáveis”, aconselha.

Buscar atendimento com profissionais assim que alterações são notadas podem evitar que o problema se agrave ou chegue a ações extremas. “A rede social virou uma necessidade para todas as faixas de idade. As famílias também acabam ficando imersas nessas mídias. É muito crescente a procura dos próprios jovens (por terapia), que solicitam aos pais que tenham acompanhamento psicológico, já que é uma geração que vem de uma necessidade em relação às anteriores. Os pais não podem se acanhar.”

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