A conquista da vaga na universidade pública é comemorada por muitos, mas para as famílias de baixa renda existe um valor maior. Ingressar na universidade para elas é a chance de contribuir com novo olhar para as próximas pesquisas e ainda redirecionar os caminhos da própria vida e das futuras gerações. Alunos do CEPV (Curso Especial Pré-Vestibular), da UEL (Universidade Estadual de Londrina), contam como a aprovação não foi um processo simples, mas fundamental para a oportunidade de criar um novo universo para si e para a sociedade.

Imagem ilustrativa da imagem Alunos de curso gratuito contam histórias de superação
| Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

Thalia Vulsveski Teodoro, 20, conta como a escolha pela fisioterapia foi se desenvolvendo pelas experiências que a vida trouxe. A jovem recorda que durante a infância, ela e a irmã gêmea, Kauanne Vulsveski Teodoro, passaram por alguns projetos sociais realizados na periferia da cidade. “Sempre tivemos muito incentivo na escola e nesses projetos. Começamos aos sete anos em um que promovia atividades relacionadas a jogos cooperativos, meio ambiente e artes circenses”, recorda. Mais à frente, participaram de outro que disponibilizava arte e cultura para crianças. Formas de ocupar o tempo de quem não tinha tantas perspectivas no futuro.

As experiências são citadas com gratidão por Thalia, entre elas, o trabalho ainda na adolescência que a fez escolher a profissão. “Minha irmã e eu cuidávamos de uma idosa, ela tinha diabetes, inchaço, eu via a dificuldade e a luta diária dela. Foi meu primeiro contato com a fisioterapia”, recorda. “Eu ia para a escola de manhã, de tarde estudava e à noite ia para a casa dela, dormia com ela e no outro dia acordava para ir para a escola de novo. A gente revezava e ajudava no que ela tinha para fazer: comida, limpava, e fazia companhia”, menciona. A irmã escolheu psicologia.

APOIO

No entanto, para dar prosseguimento na carreira foi preciso encontrar apoio em novos projetos. O CEPV era uma alternativa, para estudar foi preciso seguir critérios socioeconômicos e passar por prova de conhecimentos gerais. As duas irmãs entraram. Nenhuma das duas passou na primeira tentativa. “Foi tudo novo, completamente diferente do ensino médio, coisas que nunca tínhamos visto na vida”, comenta.

Elas tentaram mais um ano de cursinho. Kauanne passou, mas Thalia não conseguiu. “Eu não consegui achar meu nome na lista e ela ligou para mim. Ela chorando muito e eu também, todo mundo chorando de felicidade e de tristeza ao mesmo tempo”, lamenta. Thalia trabalhava em outro local e estudava, passou por processos emocionais na família e teve que lidar com perdas. Ainda assim, entrou de novo no cursinho. Conseguiu emprego fixo, mas não conciliava com os horários de estudo. Saiu do emprego para retomar como freelancer em outra atividade. “Fiquei assim até outubro, depois resolvi focar no cursinho, fazer aulas extras, comecei a me dedicar mais.”

No dia 13 de janeiro recebeu a notícia da aprovação. “Eu não conseguia abrir a página no celular, estava muito congestionado, aí me mandaram uma mensagem na rede social falando que eu tinha passado. Eu caí no choro, foi muito emocionante, fiquei em choque”, recorda. Comenta que agora a irmã mais nova já está fazendo cursinho também para seguir as duas mais velhas.

FUTURO

Com as portas que se abriram, Thalia não vê um mar de rosas. “É um curso integral, não sei ainda como vamos ficar para bancar almoço, passagem e tudo isso. Espero muitos obstáculos pela frente”, aponta. Não só financeiramente, também vê os desafios com a integração entre os colegas. “Não vai ser fácil acompanhar outros alunos, existem pessoas de outras realidades, mas acho que com o apoio da família a gente consegue manter e focar, vejo isso pela minha irmã”, revela.

A jovem lembra de quantos projetos pelos quais passou, os professores, pessoas e os incentivos que teve foram fundamentais para que ela se tornasse quem é hoje. Experiências que leva com ela para a universidade que sempre sonhou cursar. “A UEL é um sonho que eu tinha: de conquistar nosso lugar. A pública é nossa, é do povo e é nosso direito estar lá, temos que lutar pelos nossos direitos. Às vezes, a caminhada não é fácil, tem muitos obstáculos, mas é preciso persistir, se não der em um ano, vai no outro”. Este foi o ano dela.

Superando questões emocionais

Não é só desafio social, entre educação precária, questões financeiras, falta de incentivo e oportunidades que um vestibulando da periferia pode enfrentar. O emocional também abalou a estudante Bárbara Francisconi Liviero, 20, que foi aprovada no curso de psicologia do Vestibular UEL 2020 após quatro anos tentando e enfrentando crises de ansiedade.

“Eu tive que fazer tratamento psicológico e psiquiátrico, tomei medicação, tudo por conta de ansiedade que sempre tive, mas com o vestibular a pressão me afetou”, revela. A jovem conta que trabalhava como recepcionista durante o dia e fazia o cursinho gratuito da UEL à noite até decidir focar nos estudos para obter melhores resultados. “Meus pais não queriam que eu trabalhasse, mas eu fui para aliviar um pouco a pressão”, revela.

Depois do tempo de dedicação, cada nova reprovação era um motivo para que viessem com alternativas. “Várias pessoas oferecendo bolsa, até de cursinho particular, mas eu nunca quis isso. Eu passei a vida toda estudado em escola pública, na faculdade eu não queria algo diferente. Além disso, a UEL é uma universidade que eu sempre tive admiração”, aponta. A jovem conta que o próprio convívio com os professores e alunos do cursinho da UEL, por estarem mais próximos da realidade dela, a faziam se sentir mais acolhida.

Porém, não sem recaídas. “Teve momentos em que eu pensei em desistir, foram anos difíceis, mas era um sonho que eu tinha e quis mantê-lo vivo, acreditar que eu era capaz.” O resultado no dia 13 veio como um sopro de alívio. “Sensação inexplicável, foi uma felicidade que transbordou. Uma realização não só para mim, mas para muita gente ao meu redor e eu me senti realizada em dar essa satisfação a essas pessoas que estavam acreditando comigo.” Ingressante no curso de psicologia, a experiência pode ser algo a mais na tentativa de ajudar outras pessoas na mesma situação.

Vontade de ajudar o próximo leva aposentada à aprovação no vestibular

Depois de anos sem estudar, Anilza Dionísio Cagiani da Silva, 50, fez um retorno triunfal. Ela foi aprovada na primeira tentativa para o vestibular da UEL e conquistou uma vaga no curso de direito. Voltar a estudar, porém, não foi fácil. Exigiu dedicação, estímulo e apoio dos que estão ao redor, mas foi com confiança e fé inabalável que ela atingiu o objetivo.

Mas diferente de muitos jovens que sonham com uma carreira próspera e de sucesso, Anilza quer apenas poder servir ao próximo. “Não é para ganhar dinheiro, enriquecer, eu quero fazer a obra de Deus para ajudar as pessoas que realmente precisam”, afirma.

A escolha do curso veio depois de passar por situação desagradável. “O que me despertou a fazer faculdade de direito foi ver pessoas carentes sendo trapaceadas em algumas situações com o próprio advogado”, revela. Sabendo que isso não é regra, até porque Anilza foi auxiliada por outro advogado amigo, decidiu que era isso que queria fazer: atuar de maneira transparente para aqueles que estão mais vulneráveis.

Aposentada desde 2015, Anilza tomou isso como um objetivo, porém, sem preparo, sabia que seria muito difícil. “Eu lembro que estava passando roupa nos fundos de casa e ouvi o jornal: ‘Amanhã, último dia de inscrição para o cursinho pré-vestibular gratuito da UEL’. Eu corri anotar o telefone”, recorda. Passou pela avaliação socioeconômica e pelas provas de conhecimentos gerais.

AJUDA DOS COLEGAS

“No primeiro dia de aula do cursinho, maioria jovem e adolescente e eu de cabelinho branco”, ri com a situação. Foi com a ajuda de jovens e adolescentes que conseguiu continuar estudando. “Eu não tenho algumas redes sociais e eles me ajudavam, pegavam o material disponível em Facebook ou Instagram e enviavam para mim. Outros, os próprios professores mandavam para mim por e-mail”, revela.

Na correria do dia a dia, entre cuidar de casa e de filhos, conseguia improvisar um cafezinho, pães, bolos e bolachas para compartilhar com os amigos. “Saía com duas sacolas para pegar ônibus, uma com o material e outra com o lanche. Foi uma experiência muito boa”, ri.

O mesmo ponto de ônibus, no bairro Moradias Cabo Frio (zona norte), que testemunhou a luta diária. “Quantas vezes eu sentava lá e chorava: ‘meu Deus, eu estou indo para o cursinho e a minha cabeça não abre’, eu sentia muita dificuldade”, revela. Depois, com a rotina e ajuda, passou a ter desenvoltura também para tirar dúvidas, ainda que considerasse simples demais.

CONFIANÇA

Na primeira fase do vestibular, Anilza afirma que se perdeu no tempo e ficou sem passar algumas questões no gabarito, então o resultado seria uma surpresa. Mesmo assim, continuou nas aulas preparatórias para a segunda fase. A aprovação na primeira etapa foi mais que suficiente para insistir e acreditar mais nela mesma.

Na segunda fase, sente que teve uma ajuda a mais. “No dia da prova, eu acordei com o nome de um filósofo na cabeça e fui procurar saber sobre ele antes de sair. Na hora da prova, quando abri o caderno de filosofia, lá estava ele. Quando eu vi isso... É Deus mesmo”, avalia. Ela conta essa história na igreja que participa e afirma que se não fosse a vontade divina, não teria conseguido.

No dia do resultado, Anilza não queria acompanhar, esperava que alguém ligasse para dizer, mas acabou se perdendo na hora ao receber uma amiga que se mudaria para a casa da frente. Quando o filho a chamou dizendo que tinha um telefonema para ela, demorou para entender do que se tratava o assunto. “Minha amiga falou no telefone: ‘Parabéns!’ e eu fiquei sem entender, não era meu aniversário”, ri. “Até que a filha dela no fundo gritou que eu tinha passado. Minha nossa, foi uma gritaria aqui dentro de casa”, continua rindo com a lembrança. Choro, riso, gritaria, confusão, o momento foi de vibrar e agradecer.

Com dois filhos jovens em casa, uma universitária na mesma UEL e outro que vai para o ensino médio, a caloura do curso de direito vê que enfrentará alguns obstáculos, pois está aposentada com salário mínimo e o marido caminhoneiro enfrentando alguns desafios, mas nada abala o sorriso largo que ela abre quando conta essa história.

Com essa experiência toda, recorda desde o início do período educacional, quando andava sete quilômetros de estrada de chão em Astorga (Noroeste) para chegar à escola, e depois na cidade, em Londrina, quando finalizou o ensino médio em período regular. As lembranças passam pelos anos trabalhando em confecção, a educação dos filhos, os cuidados com a casa. A fase agora é diferente e com propósito louvável. “Estou me sentindo uma adolescente”, brinca.