Se o ensino superior no Brasil ainda é considerado sonho inalcançável para muitos, a ideia fica ainda mais distante para os internos em unidades prisionais. No entanto, 14 detentos da PEL II (Penitenciária Estadual de Londrina) desafiaram o próprio destino e conquistaram a aprovação no Vestibular UEL 2020. Onze deles aproveitaram a oportunidade de fazer o CEPV (Cursinho Especial Pré-Vestibular), projeto da UEL (Universidade Estadual de Londrina) que teve parceria do Conselho da Comunidade de Londrina para levar equipe de estudantes de graduação para dentro do presídio.

Imagem ilustrativa da imagem 14 detentos da PEL II são aprovados no vestibular da UEL
| Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

“O objetivo é proporcionar para esse aluno interno essa possibilidade de quando ele sair ter uma profissão, formação que ele possa exercer e que ele tenha uma perspectiva de vida melhor de quando ele entrou aqui”, comenta a coordenadora do CEPV, Rita de Cássia Rodrigues de Oliveira. As aulas eram realizadas dentro do presídio em salas instaladas nas galerias de unidade de progressão, que já contam com estrutura para o ensino. Foram abertas 50 vagas para internos selecionados seguindo critérios que consideram, entre outras questões, comportamento, saúde e tempo de pena.

A PEL II hoje conta com 1.250 detentos, 240 estão na unidade de progressão, que aplica projetos propondo a reinserção social. Além do cursinho pré-vestibular, os presos também têm a oportunidade de fazer o EJA (Ensino de Jovens e Adultos), participar de provas do Enem e do Vestibular da UEL. Além disso, três empresas privadas da área de confecção levam emprego e renda até a unidade, além dos 12 presos que estão atuando na construção da Cadeia Pública de Londrina.

REINSERÇÃO SOCIAL

“O Estado instaurou a unidade de progressão, que seria colocar esses presos trabalhando e estudando para proporcionar a reinserção social, então a gente tem que correr atrás de projetos e ofertar trabalho e estudo”, comenta Cristiano Ivano, vice-diretor da penitenciária. Para os detentos, estudar, trabalhar e ler livros lhes dão o direito de diminuir a pena conforme critérios de cada atividade. No caso das aulas, para cada 12 horas de estudo, um dia é abatido na pena.

A proposta é de que eles sejam estimulados a enxergar oportunidades para além do crime. Situação que 111 apenados perceberam ao tentarem o vestibular. A prova foi aplicada por equipe da Cops (Coordenadoria de Processos Seletivos) da UEL, na própria unidade.

Com a aprovação e com a pré-matrícula realizada pelos familiares, cada detento agora passa por avaliação do juiz para saber se vai ter a liberação. Caso seja permitido, eles ganham o direito de sair da unidade para acompanhas as aulas. “São liberados mediante monitoramento eletrônico, então eles colocam tornozeleira, possuem horário para sair e voltar, e só podem circular dentro da área de limitação, que é a UEL”, explica o vice-diretor.

NOVAS OPORTUNIDADES

A proposta é que com as novas oportunidades oferecidas, em outro ambiente como o da universidade, possam buscar novos caminhos para além da criminalidade. “As pessoas não precisam achar que o presídio está colocando na rua pessoas de alta periculosidade, pois esses alunos já foram pré-selecionados, pessoas que não apresentam mais risco para a sociedade, tanto que nossos alunos da universidade vêm até aqui e têm contato com eles. São pessoas em recuperação avançada”, argumenta a coordenadora do cursinho. “Não é uma irresponsabilidade, é entregar mecanismos para que essa pessoa busque novas oportunidades”, acrescenta.

‘Imaginava que era só para gente rica’

“O tempo aqui é perdido, para não perder tanto eu resolvi estudar e conquistar uma coisa que eu vou levar comigo para o resto da minha vida, que é conhecimento”, conta Valdir Coelho dos Santos, 37 anos. Ele está preso pela segunda vez há sete anos e ainda tem mais oito para cumprir, mas desta vez teve um despertar diferente. “Eu já não sou mais o mesmo de sete anos atrás, o estudo mudou totalmente a minha vida”, afirma.

Santos parou de estudar aos dez anos, voltou aos 12, mas passou a conviver com o crime e só voltou a estudar de novo quando foi preso. “Entrei para o crime por uma ilusão de achar que eu ia ter uma vida melhor, que eu ia ser melhor, mas foi bem pior. Eu estou praticamente 15 anos preso ao todo, então, estou quase metade da vida dentro do sistema”, lamenta.

Casado há 20 anos e uma filha de 18, Santos encontrou outro estímulo para continuar. “Minha filha falou que queria parar de estudar. A mãe dela também parou enquanto estava no sétimo ano e ela usou isso como justificativa. Então, eu propus que se ela alcançasse até a série que eu estaria, ela poderia parar. Daí eu pensei: ‘vou terminar os estudos para ela ter que terminar também’”, ri com o desafio.

Este ano é o terceiro que ele tenta o vestibular, apesar de já ter alcançado as notas para uma faculdade pelo Enem. “Minha filha fez para enfermagem, eu para educação física. Agora que eu passei, ela vai ter que passar também. Ela ficou muito orgulhosa de mim”, sorri.

LEITURA

Além dos estudos, Santos também passou a trabalhar na biblioteca da unidade. “Aqui faço de tudo, ajudo no projeto de remissão pela leitura, cada detento pode ler um livro por mês, faz um resumo, a professora corrige e ele ganha quatro dias de remissão. Então eu levo o carrinho com os livros para eles escolherem, cadastro no sistema e organizo os livros aqui”, afirma.

Para ele, o trabalho na biblioteca, a convivência com os professores da unidade e os livros foram fundamentais para sua mudança de pensamento. “Quando eu vim para cá, não tinha o hábito de ler por não ter estudado lá fora, comecei aqui com o projeto. Eu lia o meu livro e dos outros seis que dividiam a cela comigo. Aí fui mudando o meu jeito de pensar, consegui entrar na biblioteca, ter convívio com a professora e isso mudou muito minha vida”, conta.

A média de leitura de Santos hoje é de três a quatro livros por mês, gosta de vários autores e indica o clássico O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupery, para quem quer começar na leitura. Por ele já passaram Clarice Lispector, Machado de Assis e William Shakespeare. “A gente procura ler mais os clássicos, que são os que podem cair no vestibular da UEL”, revela. Com a leitura e o cursinho, as notas da redação do Enem saíram de 560 em um ano para 720 no outro.

PERSPECTIVA

“Quando a pedagoga da escola chamou a gente e avisou que tinha passado... Nossa! Fiquei muito contente, eu nunca imaginei”, conta ainda incrédulo. “Na rua a gente pensava que a UEL e fazer faculdade era só para gente rica, né!? Eu não tinha essa noção”, aponta.

Sobre a universidade, Santos espera ser acolhido. Pela conversa com professores do cursinho e com outros detentos aprovados em anos anteriores, acredita que as pessoas entenderão a condição dele. Entusiasmado com as aulas, vê a vida com outra perspectiva. “Pretendo, depois que me formar, se o doutor me deixar ir, arrumar um serviço na academia e seguir carreira como personal trainer.”

Liberdade para transformar o futuro

Possível ingressante no curso de administração, Renato Francisco, 38, é um dos 14 detentos da PEL II aprovados no vestibular da UEL 2020. Ele vai terminar de cumprir a pena em 2022 e pretende continuar o curso quando sair. “O que mais me incentivou a escolher esse curso foi a minha família. Eles mexem com empresa de roupas, meu irmão tem comércio, eu já tive o meu também e quero concluir, dar exemplo para minhas filhas lá na frente”, conta.

O interno terminou o ensino médio por meio do EJA (Educação de Jovens e Adultos) dentro da prisão e deu continuidade quando viu a oportunidade do cursinho dentro do presídio. “Para mim foi uma coisa nova, eu nunca esperei que seria escolhido entre os 50 que foram selecionados na unidade. Para mim já foi uma vitória e uma luta. Passar, então, foi mais ainda”, ri.

Isso porque esse foi o primeiro vestibular que ele tentou. “Eu sei que é difícil, muitos na rua tentam e não passam, eu aqui entre os 50 passei com os 11 da unidade”, orgulha-se. Para ele, terminar o ensino médio foi um incentivo para que ele repensasse os rumos que a vida ia tomando. “Só terminar o ensino médio já mudou meu pensamento porque eu não tive a oportunidade lá fora. Na época eu trabalhava, casei novo e aqui apareceu a chance que eu abracei com os dois braços”, brinca.

A ideia é finalizar o curso e continuar a atividade da família. “Quero abrir meu próprio negócio, ainda não tenho muito em mente, mas vou para o ramo da minha família, que é confecção”, projeta. “Estou sonhando em ter um futuro diferente”, acrescenta.

Mudar de vida também é o sonho de João Paulo Martins, 32, que pretende iniciar no curso de educação física. “Terminei o ensino médio fora, eu nunca tinha sido preso até os 25 anos, eu tenho profissão, sou gesseiro, me envolvi com pessoas erradas e quando vi eu estava enroscado até o pescoço e estou há sete anos preso”, afirma.

Quando entrou no presídio, agarrou a primeira oportunidade que tinha para voltar a estudar. “Procurei ler livro e ocupar minha cabeça. Aqui eu perdi minha mãe, perdi meu casamento e estou longe do meu filho”, afirma. Faltando cinco anos para cumprir a pena, mas com três para pedir remissão, prospecta terminar o curso já longe da penitenciária. “Vou me formar e quero prestar um concurso”, fala, recordando o exemplo dos pais.

Apesar de lamentar pelos erros, se Martins não tivesse passado por tudo isso, talvez não faria uma faculdade. “Se eu estivesse fora, não teria feito o vestibular. Eu fui trabalhar, virei pai novo, voltei a estudar por incentivo daqui de dentro. Hoje eu vejo que tenho perspectiva de vida. Saindo daqui eu vou estudar, vou trabalhar”, comenta.

Com isso, espera ser exemplo para o filho e também para outros colegas de presídio. “A pessoa tem que agarrar a oportunidade, quem não estuda aqui dentro, a chance de voltar para o crime é maior”, aponta. Para ele, a ideia não é só pensar em sair da prisão, mas exigir mais da vida. “Isso é muito sério, têm vários meninos aqui que querem continuar estudando e precisam, senão vão continuar no crime. Estudo é oportunidade de mudar.”(L.T.)