Enquanto o mundo se preparava para as consequências catastróficas da Segunda Guerra Mundial naquele icônico ano de 1938, o empreendimento inglês de colonização de terras no Norte do Paraná seguia em ritmo acelerado. Com quatro anos de fundação, Londrina já ostentava população de aproximadamente 32 mil habitantes. Segundo os registros da época, além dos brasileiros, a cidade abrigava mais de 3 mil imigrantes de 30 nacionalidades diferentes, o que lhe rendeu a alcunha de Colônia Internacional.

As comunidades italianas, japonesas e alemãs eram as mais populosas, mas também havia espanhóis e portugueses, ucranianos e poloneses; húngaros, tchecoslovacos, russos; sírios e libaneses, argentinos e australianos. Todo esse caldeirão étnico que ajudou a transformar o pequeno povoado de rancho de palmitos em uma das maiores metrópoles do sul do país deixou marcas profundas no jeito de ser do londrinense. A convivência pacífica entre os povos e a boa acolhida para quem escolhe a cidade para viver certamente fazem parte do DNA da capital do Norte do Paraná.

Mapa histórico de Londrina no ano de 1938, quando o município era conhecido por Colônia Internacional
Mapa histórico de Londrina no ano de 1938, quando o município era conhecido por Colônia Internacional | Foto: Estado do Paraná/Reprodução

Ao longo de quase nove décadas, Londrina foi destino de muitas pessoas que procuraram em suas terras férteis uma oportunidade de progresso, mas também foi refúgio para outras tantas que sofreram com os horrores da guerra. O flagelo que se abateu sobre o mundo nos primeiros anos de Londrina, com a 2ª Grande Guerra, continua a fazer vítimas e refugiados ao redor do globo, em outros embates. Segundo dados da Acnur, Agência da ONU para Refugiados, mais de 108,4 milhões de pessoas foram forçadas a migrar recentemente em razão de conflitos.

E no meio dessa massa tangida pela violência bélica estão aqueles que tiveram Londrina como destino. É o caso da pesquisadora ucraniana especialista em linguística Katherina Hodick. No mês que vem ela completa um ano na cidade que a recebeu por meio do Programa de Acolhida a Cientistas Ucranianos, da Agência Araucária, que concede bolsas de estudo a cientistas e suas famílias. Porém, o marido não teve autorização para partir. Os pais dela também permanecem lá.

Em sua rotina de trabalho na pós-graduação de Letras da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Katherina Hodick, encontra nos amigos, colegas e alunos a força necessária para suportar a saudade de casa, palavra que no ucraniano pode ser definida como “tuha”. “Minha alma existe em dois lugares ao mesmo tempo, o tempo todo. Com certeza, sem meus amigos, que são uma família aqui para mim, não conseguiria suportar todo este peso”, reconhece.

Depois de conviver por cinco meses com todos os horrores da guerra entre Rússia e Ucrânia em Kiev, capital de seu país, ela aceitou ser pesquisadora no Brasil. Os primeiros dias foram difíceis. “Meu estado emocional estava muito frágil. Eu acordava no meio da noite, lembrando dos bombardeios. Às vezes você não via todas as bombas, mas não tinha como não ouvi-las. Demorei para me dar conta que estava em um lugar seguro”, conta.

Mais semelhanças do que diferenças

A adaptação foi mais fácil do que o esperado. Para uma ucraniana que não gosta de frio e adora café, Londrina se mostrou um destino perfeito. “Eu encontrei muito mais semelhanças do que diferenças. A cidade é encantadora”. Segundo Katherina, um dos lugares preferidos dela, o Lago Igapó, é muito parecido com o lago do bairro dela em Kiev, o Tel’byn, situado a poucos metros da margem esquerda do Dnipro, quarto maior rio europeu que corta todo o país, inclusive a capital, até desaguar no Mar Morto. “Quando mandei foto para minha mãe, ela brincou: ‘não sabia que você tinha voltado para casa’”.

Em uma breve análise sobre a cidade, Katherina elogia principalmente a segurança e a facilidade de se locomover sem a necessidade de ter um carro. “Conheci outras cidades brasileiras, mas Londrina me agrada por ser segura e também pela fácil locomoção, seja de transporte público ou por carros de aplicativos. Não há muitos transtornos com trânsito e conseguimos chegar rapidamente onde queremos”.

Ao chegar a Londrina, no começo do ano, ela sabia apenas uma dúzia de palavras em português. Hoje, comunica-se com um vocabulário invejável. Durante o aprendizado em tempo recorde, conta que todos foram muitos atenciosos e pacientes. “Quando você não domina o idioma tudo é mais difícil. Mas aqui, as pessoas são tranquilas, pacientes, e te ajudam no que você precisa”, pontua.

Katherina ainda não sabe quando poderá retornar para a Ucrânia em definitivo, mas no final do ano vai poder, enfim, matar um pouco da saudade dos familiares. Ela vai passar duas semanas em Kiev. “Não posso dizer que é uma viagem sem riscos, mas eu sinto que preciso rever meu marido e meus pais. Não sei por quanto tempo esta guerra vai durar. Meu desejo é poder trazer todos comigo para Londrina”.

Em janeiro, ela retorna para dar continuidade à Antologia de Poesia Ucraniana que prepara na UEL e que pretende concluir até o final de 2024. “Queremos difundir a cultura ucraniana no Brasil de forma mais consistente. Este é um trabalho muito importante para nós”, diz. Por fim, ela agradece a acolhida. “Eu agradeço muito esta cidade que me recebeu tão bem, porque é tão difícil ser um lar para uma pessoa de outro país. Aqui eu me sinto em casa”.

Lar de muçulmanos e judeus

Dos 89 anos de Londrina, os últimos nove foram testemunhados por Anis Mohamad Orra e por Charton Baggio Schneider. Mohamad Orra é muçulmano, sheik na Mesquita Rei Faiçal, na zona leste. Já Schneider é presidente da Congregação Israelita de Londrina - Brit Bracha Brasil, e estuda para se tornar rabino. Apesar das diferenças, ambos são enfáticos em defender a harmonia entre os povos, a cultura de paz e a liberdade de culto das diferentes religiões.

Anis Mohamad Orra, sheik da Mesquita Rei Faiçal, na zona leste
Anis Mohamad Orra, sheik da Mesquita Rei Faiçal, na zona leste | Foto: Roberto Custódio

Quando os dois chegaram a Londrina, há quase uma década, viram que a cidade era terreno fértil para todas essas características. Schneider que é gaúcho com ascendência judaica, morava em Brasília, mas resolveu buscar mais qualidade de vida. Em uma busca pelas cidades com melhores indicadores no país, optou por Londrina. “Eu sinto Londrina como se fosse minha casa. É uma cidade acolhedora, gostosa de se viver. O povo de Londrina é muito bem educado, isso nos chamou muito a atenção”, comenta.

Londrina, hoje, é um polo nacional de um projeto da organização que tem como foco propagar a educação judaica a distância, por meio da internet. “Nós acreditamos que a única maneira de combater o chamado antissemitismo é por meio da educação. Através dessas lições, ensinar como é a cultura do nosso povo, para que as pessoas entendam e possam filtrar as informações distorcidas que chegam até elas”, detalha Schneider.

Charton Baggio Schneider, presidente da Congregação Israelita de Londrina
Charton Baggio Schneider, presidente da Congregação Israelita de Londrina | Foto: Roberto Custódio

Além do viés educacional, a organização também transmite os serviços religiosos, o que até pouco tempo atrás era considerado um tabu dentro da religião. “Com a pandemia, isso passou a ser mais aceito. O objetivo é chegar, por exemplo, até pessoas que moram no interior, onde não há uma comunidade judaica, ou uma sinagoga para ir”, explica. Uma vez por ano, é realizado um congresso internacional. “Recebemos membros do país inteiro e do exterior. Passamos um final de semana aqui. Eles elogiam muito a cidade”.

Já o sheik Mohamad Orra morava em São Paulo antes de se mudar para Londrina. Cansado da agitação da capital paulista, enxergou em Londrina uma boa cidade para se viver. “Aqui é bom na medida certa. Não é muito grande, mas também não é pequena. Tem tudo o que precisamos”, analisa. Sobre os lugares preferidos de Londrina, gosta de passear com a família no Lago Igapó e pela zona rural.

O sheik diz que nunca testemunhou ou foi vítima de intolerância religiosa na cidade. “Sempre fui muito bem tratado aqui, tanto pela nossa comunidade, como pela comunidade em geral. Eu e minha esposa saímos com nossas vestimentas típicas e nunca houve qualquer situação de preconceito. As pessoas chegam pra ela e falam que o lenço dela é bonito. Atrai curiosidade. Muitos vêm nos visitar na Mesquita”, conta. “Temos parceria com a Cáritas [entidade da Igreja Católica responsável pela acolhida a imigrantes], e eles são muito educados. Mesmo sendo de religiões diferentes, somos uma só pessoa no final”, completa.

Nasser Haissan Nasser, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de Londrina e Norte do Paraná
Nasser Haissan Nasser, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de Londrina e Norte do Paraná | Foto: Celso Felizardo

O comerciante Nasser Haissan Nasser, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de Londrina e Norte do Paraná, considera Londrina uma terra abençoada. Assim como a comunidade árabe contribui muito com o desenvolvimento de Londrina, temos que agradecer tudo o que a cidade nos deu. Nossa mesquita é uma das primeiras da América Latina. Isso mostra a importância desta cidade para nosso povo, que nos acolheu tão bem”, argumenta.

Sobre os conflitos na Faixa de Gaza, apesar de terem posicionamento diferentes, os três têm o mesmo desejo de uma solução pacífica, apesar de acreditarem que um desfecho assim é complexo. “É uma questão histórica de alta complexidade. Não queria estar na pele dessas autoridades, porque é extremamente difícil encontrar uma solução para o conflito”, lamenta Schneider

Nasser também comenta sobre a natureza política, cultural e religiosa deste conflito e de outros espalhados pelo mundo. “Temos que agradecer que aqui no Brasil muda tudo. Nossa comunidade, por exemplo, vive pacificamente no Brasil porque a essência do muçulmano é pacífica, mas não é só o muçulmano. Isso também acontece com outros povos e religiões. O Brasil favorece a paz, o Brasil é um país de paz, acolhedor, de mistura de raças, e Londrina sintetiza muito bem isso”, observa.