“Tivemos que aprender tudo ‘na marra’. Temos bastante trabalho. O que me motiva são os alunos”, enfatiza Sérgio Cardoso
“Tivemos que aprender tudo ‘na marra’. Temos bastante trabalho. O que me motiva são os alunos”, enfatiza Sérgio Cardoso | Foto: Gustavo Carneiro

Olhares de mais de 200 alunos resumidos na lente de uma única câmera que registra as aulas on-line. A gravação simples, sem sair de casa, esconde a complexidade da rotina ainda em adaptação. Estar longe dos estudantes neste Dia dos Professores causa inquietação. O convívio deu lugar à sobrecarga de trabalho e exigiu boas doses de paciência e até de improviso.

“Foi um susto. Eu confesso que fiquei meio assustado porque fiquei pensando como eu poderia desenvolver o meu trabalho de uma maneira profissional e de uma forma que o conteúdo chegasse com qualidade até os alunos. Isso me angustiou muito”, confessa o professor de matemática Sérgio da Silva Cardoso.

O docente leciona em Londrina na rede estadual, nas escolas do distrito de Guaravera e do Patrimônio Regina, e também atua no Sesc (Serviço Social do Comércio) com turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Os panoramas diferentes, considerando faixa etária e acesso à tecnologia, tornam ainda maior o desafio de planejar as aulas. Atividades impressas são disponibilizadas para os que não possuem condições mínimas para acompanhar as disciplinas por meio da internet.

A mudança brusca do giz para o computador também demandou investimentos por parte dos docentes. Cardoso, por exemplo, adquiriu notebook, um quadro branco e canetas para a lousa. A aposta é tentar se aproximar ao máximo dos estudantes, ainda que virtualmente. Na busca pela conexão com as turmas, o professor acessa diversas plataformas e redes sociais.

“Tivemos que aprender tudo ‘na marra’. Temos bastante trabalho. É bem cansativo… Sábado, domingo, feriado e assim vai indo. O que me motiva são os alunos”, enfatiza o professor. O apoio das famílias e das equipes pedagógicas tem sido essencial enquanto é necessário aguardar a retomada segura das atividades.

Para Cardoso, este é o momento mais desafiador desde o início da carreira, em 2012. Mesmo diante de tantas dificuldades e incertezas, o aprendizado e a troca de conhecimento com os alunos têm surtido efeitos dentro e fora das salas de aula.

“Em 2015, um aluno em Lerroville me pediu para gravar a aula e eu disse que tudo bem. Ele gravava e assistia em casa. Depois deu a ideia de fazer um canal no Youtube. Eu nem sabia fazer isso. Os alunos me ajudaram. Fizemos o canal e eu fui colocando sem editar os vídeos, sem nada, só para ajudá-los mesmo. Não tinha pretensão nenhuma. Só queria dar uma força para a turma. Quando começou a pandemia, resolvi investir mais nisso”, explica.

No início, a resolução dos exercícios era feita em folhas de caderno ou sulfite. O canal Matemática Londrina tem pouco mais de 1,4 mil inscritos. Os agradecimentos nos comentários se tornaram incentivo para as novas gravações.

Apesar do canal on-line, para ele, nada substitui o ensino presencial. “A escola não é só um local para fazer contas, para aprender a ler e a escrever. Pelo olhar, a gente sabe quando o aluno não entendeu bem o conteúdo e a criança precisa também do convívio social. O emocional dos alunos está muito ruim. [...] Ser professor não é fácil. É preciso ter muito preparo psicológico para passar por tudo isso.”

‘Sinto falta do abraço’

Preparar atividades para turmas da educação infantil, para crianças com idade entre 5 e 6 anos, já fazia parte da rotina da professora Kátia Simone Martins. Docente na rede municipal há 16 anos, ela atua em duas escolas e se deparou com a complexidade do ensino remoto para essa faixa etária.

"O professor está se sobressaindo mesmo com todas essas dificuldades”, diz Kátia Simone
"O professor está se sobressaindo mesmo com todas essas dificuldades”, diz Kátia Simone

“O primeiro vídeo foi muito tenso, foi direcionado para as famílias. O segundo foi para as crianças e foi mais tenso ainda. O vídeo ficou muito longo e eu não conseguia enviar. Tive que mandar áudio e fiquei muito frustrada. Depois consegui pesquisar, aprendi e a gente foi se adaptando”, explica.

Grupos nas redes sociais e uma conversa franca com as famílias a ajudaram na nova rotina. As dez horas de trabalho diário avançaram pela noite e finais de semana. A compreensão teve que partir de ambos os lados.

“Todo mundo começou do zero e cada um teve que buscar estratégias. Eu tive que me libertar, me despir de muitos pré-conceitos para me constituir uma nova professora. Tive que fazer o exercício da escuta. Eu me aliei às famílias para que a gente não se perca no meio desse caminho. Nem todo mundo consegue fazer as atividades no mesmo dia. As famílias voltaram ao trabalho. Algumas crianças ficam na casa dos avós a semana toda e só voltam para a casa da mãe no final de semana e, muitas vezes, só têm aquele período para fazer as atividades”, conta.

Além da atenção extra aos conteúdos, uma série de fatores passou a ser considerada na hora de planejar as atividades. “Tem criança que não tem mesa para colocar o caderno e tem criança que tem um quarto de estudos. Sempre faço enquete com os pais para saber no que posso melhorar. Em uma dessas enquetes, a maioria dos pais pediu para que eu não mandasse vídeos, só áudios, porque os vídeos usam muitos dados da internet, principalmente, no final do mês quando o plano está acabando. Aí eu parei.”

“Sinto falta do abraço das crianças, da conversa. Eu tenho uma dinâmica de mandar áudio, mandar cartinha, mandar kit com materiais de recurso, mas sinto falta daquele calor humano, de ver aquela descoberta. É muito gratificante você ver quando eles aprendem, quando eles atingem aquele objetivo que a gente planejou. Hoje a devolução das atividades é fria. Eu não participo diretamente desse processo”, desabafa.

“O retorno vai ser muito difícil até por causa dos protocolos de segurança. Dependendo do profissional, ele vai sofrer bastante e o aluno também. Eu falo isso por mim. Eu sou uma pessoa do toque, do abraço, de pegar a criança no colo para explicar as atividades e eu sei que algumas coisas nós não vamos mais conseguir fazer. Mas, ao mesmo tempo, acho que uma hora a gente vai voltar e vai dar conta sim. O professor está se sobressaindo mesmo com todas essas dificuldades.”

'O vírus que nos levou para casa’

As primeiras impressões sobre o impacto da pandemia no ambiente escolar foram retratadas por pesquisadores da UEL (Universidade Estadual de Londrina) no e-book gratuito "Escolas em quarentena: O vírus que nos levou para casa". Nas 250 páginas, professores que atuam de rede básica de ensino e que fazem parte do grupo de pesquisa História e Ensino de História relatam as dificuldades e incertezas no início do processo de adaptação entre os meses de março e abril.

"O livro surgiu desse susto que todos nós levamos no mês de março. Foi tal como aquele dia em que o professor chega para dar aula, mas aconteceu algo muito importante para aquele grupo e o grupo não fala de outra coisa. Aí o professor tem dois caminhos: ou ele fala 'gente, vamos conversar sobre isso depois e vamos voltar para o nosso conteúdo agora' ou ele transforma a vida em conteúdo. E foi o que a gente fez”, explica a professora do Departamento de Educação da UEL e do programa de pós-graduação em Educação, Sandra Regina Ferreira de Oliveira, organizadora do livro.

O compromisso dos pesquisadores do grupo, mestrandos e doutorandos, é analisar novamente os textos daqui dois anos e elaborar um novo relato sobre o impacto da pandemia na educação. Angústias, vivências e perguntas sem respostas estão presentes nos artigos.

“É um livro de reflexões. Daquilo que escrevemos em abril, quanta coisa já mudou. Foi um momento de susto e aprendizagem. Professores que adotaram o celular de imediato e hoje contam com outras tecnologias. Tem um texto aqui, por exemplo, da Lucila Barros em que ela escreve assim: ‘Fecho esse texto angustiada com os mais de 7 mil mortos no País’. A gente não tinha dimensão de onde tudo isso ia parar”, destaca a docente. A quantidade de mortes por Covid-19 já ultrapassou a marca de 150 mil.

“A pergunta central hoje, nesse meio da pandemia que estamos vivendo, não é o que vamos fazer com esses conteúdos que alguns dizem que estamos ‘perdendo’, mas é o que que nós vamos fazer com todo esse conhecimento que nós estamos aprendendo a duras penas. Espero que a gente saia disso tudo com uma ideia de mundo um pouco melhor. Vejo as pessoas dizendo a expressão ‘novo normal’. Normal nunca está. A gente vai se adaptando às aberrações. Espero que a gente aprenda e faça uma escola ainda mais potente quando tudo isso passar.”

Link para o e-book: https://www.editoramadreperola.com/wp-content/uploads/2020/07/ebook_escolasemquarentena_.pdf