Imagem ilustrativa da imagem O grande cão e o terrível acontecimento
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"Não me diga que a Lua está brilhando; mostre-me o seu reflexo em um caco de vidro."
(Anton Tchekhov)

No ano de 1886, o escritor russo Anton Pavlovitch Tchekhov (gosto desse nome; Anton Pavlovtich significa Antônio filho de Paulo, e eu me chamo Paulo Antônio) publicou um conto intitulado "O Acontecimento", uma das pequenas obras-primas da literatura universal que Tchekhov produziria em sua curta existência (morreu com apenas 44 anos). A história, que não ocupa mais do que cinco páginas, mostra um casal de irmãos, o menino de seis anos (Vânia) e a menina de quatro (Nina), fascinados com a notícia de que a gata da casa deu à luz três filhotes. As crianças brincam com os gatinhos, fazem planos para o futuro das criaturas e, na falta do pai biológico, escolhem como pai adotivo um cavalo de pau do quarto de brinquedos. À noite, depois de passarem o dia negociando com os pais a permanência dos bichos em casa, as crianças notam que há uma visita para o jantar: o Tio Pietrucha (diminutivo de Piotr; em russo os diminutivos são frequentemente maiores que os nomes) e seu enorme cão dinamarquês, Nero. Durante o jantar, um dos criados da casa vem dar a triste notícia: Nero entrou na cozinha e comeu os três filhotes da gata. As crianças ficam estarrecidas e choram muito; os adultos apenas riem e fazem comentários sobre o apetite voraz do cão.

Aparentemente é uma história banal. No entanto, quanta verdade se esconde nessas poucas linhas! As crianças representam a contemplação pura da realidade, e tudo que essa contemplação implica: a alegria e o assombro, a responsabilidade e o afeto; a identidade e a compaixão. As idades de Vânia e Nina, somadas, resultam no número 10, símbolo de completude e integridade; os gatinhos são três, perfazendo a natureza trina e sagrada de toda a criação. Nero, com sua indiferença em relação aos pequenos, tem muito do imperador romano que lhe deu nome.

Na verdade, Nero simboliza muito mais do que o imperador que botou fogo em Roma. Creio até mesmo que o nome escolhido por Tchekhov não revela a essência do personagem. Afinal, o cão não está louco, nem se considera um artista, mas age com absoluta frieza: é o forte que devora os fracos sem maiores considerações morais. Nero não se mostra mau, apenas fez o que a natureza instintiva lhe ordenava fazer. Não há crueldade em seu ato; há inexorabilidade.

Em seu ensaio dedicado ao conto, Otto Maria Carpeaux, como de hábito, vai ao x do problema: "Assistindo à pequena tragédia dos filhotes da gata, as crianças têm o seu primeiro contato com a realidade lá fora (as visitas); aprendem a sentir aquilo de que os adultos, estultificados pela experiência repetida, já não tomam nota; o grande cão do tio é a morte que devora a vida; e este Acontecimento merece bem ser escrito com maiúscula, pois é o Acontecimento mais significativo de todos".

Quantas tragédias nós também não rejeitamos, com um sorriso de desdém, como se fossem acontecimentos triviais? Quantas vezes viramos o rosto para a morte, não de gatinhos, mas de crianças, devoradas pelo Nero chamado aborto?

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