Imagem ilustrativa da imagem Crime sem castigo



Confesso a vocês que não me sinto à vontade para fazer esta palestra. Falar depois de intelectuais, juristas e professores tão qualificados está muito acima das minhas capacidades e do meu merecimento. Mas, neste evento organizado com tanta generosidade pela Dra. Cláudia Piovesan, era preciso que alguém fizesse o papel de testemunha. Serei uma testemunha bastante singular, uma testemunha que também confessa. Venho aqui não para declarar certezas, mas para expor perplexidades. Tudo que eu disser aqui poderá ser usado contra mim depois, mas tenham certeza de que já foi usado no tribunal da minha consciência, onde estou só diante de Deus.

Sou um cronista, escrevo com o coração nas mãos. Às vezes as pessoas têm uma visão equivocada sobre isso. O papa emérito Bento XVI ensina que a palavra "coração", no sentido bíblico, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. Escrever com o coração nas mãos, portanto, não significa render-se ao sentimentalismo, mas aceitar a estrutura da realidade. Meu trabalho exige não voltar as costas àquilo que se apresenta diante dos meus olhos.

Certa vez, há mais ou menos 20 anos, eu visitei a cidade histórica de Mariana, em Minas Gerais. Ali existe uma praça com duas igrejas antigas, postadas uma de frente para a outra, em linha diagonal. No dia em que eu visitei Mariana, uma dessas igrejas irmãs havia acabado de sofrer um incêndio. Estava destruída. O telhado desabou, o altar foi consumido pelas chamas, as paredes quedaram carbonizadas, não havia mais imagens nos nichos. Por toda a praça, sentia-se um clima de melancolia e desamparo, e o cheiro do fogo ainda era muito forte. Naquele instante eu olhei para aquela igreja incendiada e disse para mim mesmo:

— Esta é a minha alma.

Foi quando eu percebi que quase toda a minha vida dependia das mentiras que eu contava para mim mesmo. Quando eu penso em nosso país hoje, eu me lembro daquele dia. De certa maneira, o Brasil de 2018 é um templo em ruínas. Há 20 anos, eu me considerava ateu, jamais rezava. Muito tempo depois, quando voltei para a Igreja, comecei a rezar todos os dias, dezenas de vezes, a oração da Ave-Maria, que termina com as seguintes palavras: "Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte".

Agora e na hora de nossa morte. Rezar a Ave-Maria nos obriga a contemplar a vida sob a perspectiva da morte. De uns tempos para cá, não resta dúvida de que a Nova República, esta que foi inaugurada há 33 anos, está morta. Morreu de morte matada. No entanto, um país não morre apenas uma vez. A história de toda nacionalidade consiste em uma sucessão de mortes e ressurreições. Não foi por acaso que Jesus disse a Nicodemos: "Necessário vos é nascer de novo". Assim, resta uma esperança para o Brasil.

Para a descrever a morte de um país, não basta a palavra assassinato. É preciso utilizar um termo mais forte: genocídio. Mas, num país com as dimensões do Brasil, talvez seja preciso ir um pouco mais longe. Talvez seja preciso falar em uma combinação de genocídios. Agora e na hora da nossa morte.

No Brasil de hoje, eu identifico ao menos três genocídios simultâneos. Temos um Estado gigantesco, que engole metade da renda dos brasileiros para manter viva uma máquina gigantesca, ineficiente e profundamente corrupta. Um estado que criminaliza os empresários comuns — aqueles que geram empregos e produzem riqueza para a nação — e se alia aos megaempresários desonestos — aqueles que geram desfalques e amealham riqueza para si mesmos. Este é o genocídio da corrupção.

Temos a destruição quase absoluta da alta cultura e da educação clássica, com nossos estudantes ocupando os últimos lugares nas avaliações internacionais. Apesar das valorosas exceções no ambiente acadêmico, nossas universidades, especialmente as públicas, se deixaram dominar pela ditadura ideológica, como demonstrou o professor Fausto Zamboni. O resultado é que estamos entre os lanterninhas mundiais da educação, temos dado pouca ou nenhuma contribuição à cultura universal e formamos legiões de analfabetos funcionais. Este é o genocídio da inteligência. Sobre essa matança espiritual também falaram, com brilhantismo, os meus amigos e mestres Bernardo Pires Küster, Carlos Nadalim, Dante Mantovani e Luke de Held.

E, claro, temos o mais grave genocídio de todos. Precisamos vencer a burrice e a ignorância. Precisamos vencer a corrupção e a incompetência. Mas, para fazer isso, precisamos antes estar vivos. Hoje estamos entre os países mais letais do mundo. Temos 60 mil homicídios, sendo que em 92% dos casos, o assassino nem sequer é identificado. Que dirá julgado. Que dirá preso. Eu não preciso falar sobre isso; os palestrantes da área jurídica que me antecederam já disseram tudo. Eu fico feliz que no Brasil ainda tenhamos gente com a coragem de olhar para a estrutura da realidade e chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Gente como Edilson Mougenot, Diego Pessi, Leonardo Giardin, Bruno Carpes, Ludmila Lins Grilo e a nossa anfitriã e mentora Cláudia Martins Piovesan.

Sessenta mil mortos por ano. Esse é o pior dos genocídios do Brasil: o genocídio de sangue. Porque um país morre sendo roubado. Um país morre perdendo a inteligência. Mas um país morre muito mais — morrendo. Mesmo para ser roubado e para ficar burro, você precisa estar vivo.

Meu trabalho de cronista consiste em fazer diariamente a descrição da nossa realidade. É uma espécie de Mito de Sísifo diário, em que a gente leva uma rocha até o topo da montanha só para vê-la rolar de volta no final do dia. Todos os dias eu tento descrever, em 2.900 caracteres, a minha perplexidade diante desse país, e também as minhas esperanças, especialmente na vida familiar. Mas a minha fonte principal, além daquilo que consigo ver com os meus próprios olhos, não está na grande mídia, nem nas redes sociais, nem nas estatísticas, nem nas entrelinhas da legislação. Está nas grandes obras do espírito: na literatura e na tradição sagrada.

Para ilustrar o valor das grandes obras da imaginação, eu vou citar uma passagem do romance "A 25ª Hora", do escritor romeno Virgil Gheorghiu. A ação do livro se passa nos terríveis anos da Segunda Guerra Mundial e tem como cenário os campos de concentração. A certa altura, Traian Koruga, uma fascinante personagem do romance, conta que fizera um cruzeiro de submarino, passando milhares de horas debaixo d’água. Antigamente, os submarinos não tinham um aparelho que determinava a quantidade de oxigênio disponível. Os marinheiros então faziam o seguinte: levavam alguns coelhos a bordo. Quando o ar começava a ficar tóxico, os coelhos morriam. A morte dos bichos era sinal de que só havia mais seis horas de vida para os seres humanos. Ou o submarino voltava à superfície e renovava o ar, ou todos os tripulantes morreriam.

Quando uma civilização entra em declínio, os coelhos começam a morrer. E no Brasil, há muito tempo, eles estão morrendo a cada dia. Morrem no genocídio da corrupção, no genocídio da inteligência e no genocídio de sangue.

Mas qual a relação entre as grandes obras da imaginação e a tragédia nacional? A resposta é simples: a alta cultura está para a civilização assim como a carga de oxigênio está para o submarino. O grande professor paranaense José Monir Nasser dizia: "Uma sociedade não pode ser rica antes de ser inteligente". Não teremos um país próspero, nem um país justo, sem uma base cultural e espiritual sólida. Como disse o Filho do Homem, não se constrói uma casa sobre a areia. Só sairemos da crise civilizacional em que estamos mergulhados se houver aqueles entre nós capazes de resgatar as grandes obras da imaginação. Agora e na hora da nossa morte.

Para que os coelhos parem de morrer, é preciso abandonar o nosso cronocentrismo, ou que o Eliot chamaria de "provincianismo temporal", aquela ilusão de que tudo que é moderno é melhor. A ilusão de que o seu tempo é melhor que os anteriores porque você nasceu nele. É preciso sair dessa prisão temporal para que o país pare de morrer. Sem o retorno à alta cultura, continuaremos patinando entre os nossos três genocídios, continuaremos cegos no fogo cruzado das ideologias, dos projetos de poder e dos messianismos sem Deus.

Esse trabalho não é fácil, e leva muito tempo para ser realizado. É como construir uma catedral gótica. A luta civilizacional começa a partir de pequenos grupos e pequenas iniciativas, como este Fórum. Como o nosso modesto Clube do Livro da ACIL, em que este cronista de sete leitores, mais o talentoso sociólogo Silvio Grimaldo, meu grande amigo, há um ano e meio fazemos a leitura e a discussão dos grandes livros que ajudam a explicar o ponto a que chegamos. Porque, mais uma vez citando o professor Monir, "não somos nós que explicamos os clássicos, eles é que nos explicam". Agora e na hora da nossa morte.

É como já disse o professor Olavo de Carvalho: "Nada como a grande literatura de ficção para desenvolver no leitor a capacidade de julgamento moral. Ali vemos muitas situações dramáticas, trágicas, cômicas ou paradoxais que talvez jamais encontraremos na nossa vida pessoal, que transcendem o nosso horizonte atual de consciência, mas que devemos conhecer porque fazem parte da vida humana e porque nada impede que amanhã ou depois apareçam diante de nós ou sucedam a nós mesmos. A experiência imaginária amplia a nossa compreensão moral e nos prepara para julgar as coisas com sabedoria e justiça. A maior parte dos julgamentos morais errados provém da imaginação estreita".

Nos grandes livros, nós aprendemos que a morte é a grande professora da vida. Se passarmos a observar a vida sob a perspectiva da morte, tudo se torna mais claro e inteligível para nós. É disso que Ortega y Gasset fala quando se refere às ideias do náufrago, aquelas que continuam a valer mesmo no momento em que você está se afogando no meio do mar. A morte é a professora da vida nas "Memórias de Brás Cubas", de Machado de Assis, em que o autor defunto — ou defunto autor — se expressa com absoluta sinceridade sobre a sua existência vazia, egoísta e sem sentido. Morto, Brás Cubas não precisa enganar a mais ninguém; nem a si mesmo. Na obra-prima "Os Sertões", Euclides da Cunha fala sobre uma das mortes do Brasil — o genocídio de Canudos, em que um governo muito progressista e revolucionário massacrou milhares de camponeses miseráveis. E pouca gente se lembra que o "Triste Fim de Policarpo Quaresma" é participar da sanguinária repressão à Revolta da Armada, que está para a revolução positivista brasileira assim como o massacre de Kronstadt está para a revolução comunista russa. Machado, Euclides e Lima Barreto sabiam que a morte é a grande professora da vida. Agora e na hora de nossa morte.

Mas outra lição que aprendemos com os grandes livros é a necessidade da descida ao inferno. Antes de voltar para Ítaca, Odisseu precisa visitar os mortos no reino de Hades, inclusive a sua mãe, que morreu de saudade a esperar pelo filho. Hércules desce aos inferno. Dante desce ao inferno. Fausto desce ao inferno. Os protagonistas de Tolstói e Dostoiévski descem ao inferno. E há muitos que descem pessoalmente ao inferno — Viktor Frankl, Soljenítsin, Padre Kentenich. E qual foi a primeira revelação que Nossa Senhora fez aos três pastorzinhos há 101 anos em Fátima? Ela mostrou às crianças uma visão do inferno. O próprio Cristo desceu à mansão dos mortos. Eu creio que essa descida ao inferno é uma necessidade universal. Todo indivíduo, de uma forma ou outra, passará por isso. E talvez um país tenha de passar por isso.

Essa morte diária, essa morte cotidiana, essa morte banalizada de nossos irmãos brasileiros também é uma descida aos infernos. Ela também pode ser a nossa professora de vida. 60 mil mortos por ano equivalem a um massacre de Canudos a cada quatro meses. E até agora não apareceu nenhum Euclides da Cunha para denunciá-lo através de uma grande obra do espírito. O professor Olavo Carvalho disse dois dias atrás que a reflexão autobiográfica é o primeiro passo para o pensamento filosófico. Às vezes eu penso que aquela igreja incendiada que eu vi em Minas Gerais, há quase vinte anos, se parece muito com a igreja de Canudos, além de refletir a imagem do Brasil de hoje, como eu já disse.

E tudo isso acaba sendo um paradoxo para quem contempla a estrutura da nossa realidade. O Brasil não é mais o país tropical abençoado por Deus, nem país do futebol, nem o país do samba, nem o país do futuro. O Brasil se tornou o país do crime. E o que é pior, como uma paródia do romance de Dostoiévski, somos o país do crime sem castigo.

Deus é infinitamente justo e infinitamente misericordioso. Como é possível conciliar essas duas qualidades — a justiça e o perdão? Nós não temos a resposta. E provavelmente nunca teremos nesta vida. Mas de uma coisa podemos estar certos: um mundo sem justiça acabará por se tornar um mundo sem perdão. E um mundo sem perdão acabará por se tornar um mundo sem justiça. Uma sociedade que não pune seus criminosos acabará criminalizando seus inocentes. O crime sem castigo gera o castigo sem crime. Esses fenômenos se tornam mais evidentes nas sociedades totalitárias, mas também se manifestam no mundo democrático. A transformação da punição em crime e do crime em punição vale para o comunismo, para o nazismo e para o globalismo.

O mundo do crime sem castigo é o mundo do relativismo moral, em que todos os valores se equivalem. Se todos os valores se equivalem, se a vítima é tão culpada quanto o bandido, acabaremos por nos deitar, cedo ou tarde, no leito de Procusto da ideologia. Procusto, como se sabe, era um famoso bandido da mitologia grega, dono de uma hospedaria na beira da estrada. Lá só havia duas camas. Se o hóspede era alto, Procusto o deitava na cama menor, e lhe cortava os pés e a cabeça. Se o hóspede era baixo, Procusto o deitava no leito maior, e lhe esticava os membros sem piedade. Em ambos os casos, Procusto matava os hóspedes para lhes roubar os pertences. Ninguém sobrevivia.

O leito de Procusto continua a existir mundo moderno. Ele ressurge sempre que alguém tenta adequar a realidade do mundo a alguma utopia política; invariavelmente, o resultado é desastroso. A diferença entre o Procusto mitológico e o Procusto moderno consiste em que as ideologias coletivistas não se limitam a matar uma vítima por vez; multiplicaram esse crime por milhares, por milhões. Em vez de oferecer pouso como Procusto, oferecem "justiça social", "igualdade" e "um mundo melhor". Mas nós, conservadores e liberais, precisamos estar atentos para não criar os nossos leitos de Procusto ideológicos. Porque o resultado poderá o mesmo: a criminalização da vida comum e a normalização da vida criminosa.

A alta cultura é um antídoto para a perda da realidade que vivemos no nosso tempo, tempo em que se tornou proibido dizer que uma mulher é uma mulher, que um homem é um homem, que o céu é azul e que a grama é verde. Tempo em que enxergar a realidade se tornou crime. Tempo em que as grandes forças mundiais do coletivismo chamam de fascistas todos aqueles que se opõem a seus planos nefastos. Só os grandes livros nos dão a medida exata do mal que está sendo preparado por esses senhores do mundo.

Ainda que muitas vezes possamos viver a maldição da personagem Cassandra — que tinha o dom de enxergar a verdade, mas não o de convencer as pessoas —, nós não ficaremos calados. Buscaremos o ar puro de Sófocles, de Ésquilo, de Dante, de Cervantes, de Shakespeare, de Camões, de Goethe, Tolstói, de Machado, de Pessoa. O oxigênio de Ortega y Gasset, de Chesterton, de Orwell, de Huxley, de Euclides da Cunha, de Borges, de Kundera. Poderemos até sofrer o mesmo destino do palhaço de Kierkegaard, que correu até a aldeia para avisar que o circo estava em chamas, mas todos deram risada. Poderemos até ser os coelhos do submarino de amanhã. Mas não vamos parar nunca. Aprendemos com o herói Odisseu que a maior aventura é voltar para casa. Agora e na hora de nossa morte. Amém.

(Palestra proferida em 16 de junho de 2018, durante o Fórum Direito, Educação e Alta Cultura, realizado em Londrina.)