Em livro publicado pela primeira vez no ano 2000, intitulado "Em busca do povo brasileiro", o sociólogo Marcelo Ridenti rememora a efervescência cultural e política das décadas de 1960 e 1970, um período em que o desejo de mudar a realidade atravessava corações e mentes. Havia no país um amplo e plural movimento de esquerda disposto a construir, nos termos de Che Guevara, um "homem novo". O modelo dessa criação estaria, ao mesmo tempo, no passado - no ideal romântico de um Brasil ainda não maculado pelas mãos ásperas do capital - e no futuro - na disposição de fundar as bases para uma revolução nacional-popular que pudesse modernizar o país e ultrapassar os horizontes estreitos da sociedade burguesa.

Imagem ilustrativa da imagem Uma questão de identidade
| Foto: Shutterstock



O tema da identidade, nos diversos movimentos que compunham a cena cultural e a vida política naqueles tempos de censura e repressão, era central. No cancioneiro, no cinema, no teatro, nas organizações estudantis e operárias, o alvo era capturar as raízes históricas do povo brasileiro e promover uma mudança de rumo, na qual a condição de nação subdesenvolvida fosse, enfim, superada e deixada para trás. Um futuro possível iluminava os chamados anos rebeldes. Um sentimento "romântico-revolucionário" era um traço comum entre aqueles que lutavam contra o atraso social e o autoritarismo das estruturas de poder.

Muita água rolou nos últimos 50 anos. A imagem do Brasil que se percebia nas músicas de Chico Buarque, que se visualizava nos filmes de Glauber Rocha, que se expressava na gestualidade teatral de Augusto Boal, que transbordava das páginas literárias de Antonio Callado ou que anunciava a liberdade na ação política de Carlos Marighella deixou de compor um ideal universal e passou a se multiplicar em fragmentos, nem sempre conscientes dessa herança nascida de uma história comum.

LEIA TAMBÉM
- Com atraso recorde, dívida do Fies é de R$ 20 bilhões
- Programa deixa de ser principal opção de financiamento

O velho alinhamento utópico das condutas culturais e intelectuais que irmanavam a esquerda brasileira, apesar de - e graças a - suas inúmeras fissuras, converteu-se em memória. As identidades que se defendem hoje nem sempre vislumbram a unidade na diversidade. Em vez disso, optam pela equivocada estratégia de dividir para conquistar.

Certo uso essencialista das identidades livrou-se da ideia de povo, nação e revolução. Em nome da defesa de singularidades, abre-se mão de dialogar e criar pontos de intersecção. Em casos extremados, duvida-se da solidariedade (um valor básico da esquerda) como matéria-prima da ação política e se rejeita, de pronto, toda forma não idêntica de ser e viver. Com isso, prefere-se o axioma permanente da desigualdade à busca pela igualdade, pelo povo brasileiro, pelo gênero humano.

O recurso às identidades, com suas ricas peculiaridades histórico-culturais e justas reivindicações políticas, precisa apoiar-se numa ideia de futuro comum, como fizeram os intelectuais e artistas revolucionários das décadas de 1960 e 1970. Identidades que não queiram definir trocas afetivas e circular no lugar dos outros não têm como sobreviver para suscitar um mundo em que caibam todos os seres humanos. Se o alvo é a identidade, a flecha só pode ser a igualdade.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - [email protected]