Imagem ilustrativa da imagem Um ano trágico e heroico
| Foto: Shutterstock


É arriscado adjetivar curtos períodos históricos. Para ser reconhecido como bom, ruim ou "perdido", o tempo tem de conter uma porção razoável de acontecimentos, algumas rupturas, algo que o diferencie de épocas anteriores. Nesse sentido, afirmar que um ano foi assim ou assado, além de carregar muita arbitrariedade analítica (fenômeno típico das subjetividades "suspensas", distantes da vida coletiva), não ensina quase nada sobre lutas sociais, política ou memória.

Contra toda a prudência exigida do olhar crítico, vale a pena uma interpretação de 2018 que o posicione num ponto divisor de águas na trajetória do tempo histórico. Trata-se de um ano que, em seus últimos suspiros, já pode ser compreendido como desfecho de um ciclo e provável abertura de outro. Isso, é evidente, não significa condecorar 2018 com medalhões de novidade. Muito antes de ser uma porção de meses capaz de produzir perplexidades e ineditismos, 2018 deve ser lembrado como um ano em que certa noção de "lógica" triunfou. No fim das contas, suas tragédias eram anunciadas havia bom (ou muito malvado) tempo.

É razoável que se comece pelas eleições. Partidos nanicos coligando velhas elites, corrosão prática do horário "gratuito" no rádio e na TV, desaparecimento do debate público, surgimento de novas modalidades de redes de intriga, mentira e dominação ideológica, inéditas modalidades do ódio como política. Tudo isso desfez o campo gravitacional da frágil democracia brasileira e a lançou ao chão, arrebentando-lhe os sentidos. O trauma ressuscitou fantasmas e reconduziu pelas veredas de acesso ao poder a imagem quase perfeita daquilo que havia sido combatido por várias gerações de democratas: a mentalidade autoritária e seu irmão gêmeo, o medo. Pode-se falar em absoluta novidade?

Pelos mesmos campos inférteis de boas ideias, o horror semeava sua floresta incansavelmente. Militantes do obscurantismo ganhavam adeptos e conquistavam espaços afirmando-se não militantes. Velhas ideologias, sob o véu de trevas daqueles que se dizem sem ideologias, acusavam as liberdades democráticas de perniciosas e mobilizavam novas marchas de "ordem e progresso", compostas por "gente de bem", valores religiosos elevados, crença na mão invisível e, principalmente, promessa de varrer do mapa comunistas e outras pestes. Em nome do futuro, o presente era falseado a toda hora, acenando para o passado com livros de história reprovados pelo bom senso. De repente, redes sociais se transformaram em casarões mal-assombrados, nos quais todos podiam jurar eliminar espíritos do mal e reacender luzes de paz. Por trás de tanta "bondade", germinava um projeto de esmagamento da inteligência, destruição da sensibilidade e perseguição da diversidade. O tempo, enfim, ficava nublado, e a tragédia do porvir já era anunciada sem galhardias, mas de modo dolorosamente eficiente.

Livrarias fecham suas portas, número de leitores diminui, antigas posturas saudáveis (como ocupar praças, frequentar espaços culturais, promover o encontro livre das diferenças) se tornam inusuais. Ao mesmo tempo, dentes rangendo, impropérios dirigidos aos outros, cassação de direitos e criminalização de lutadores transbordam da lata de lixo da história. Sobre a ideia de novos muros que "consolidadas" democracias liberais anunciam erguer, para expurgar os indesejáveis e impor mais força e covardia, passeiam conhecidos animais noturnos, do tipo que mata e manda matar, não sonha e vive de eliminar os sonhos do mundo. Há uma lógica nisso tudo, perversa, ancestral, que se dilui na descrença de que a luta de classes será sempre o motor da história e nas sedutoras palavras fáceis de ardilosas personagens do absurdo.

No caso de 2018, nada do que foi amplamente noticiado representa o novo. O desconcertante estará nas vitórias da coragem sobre a covardia, na potência de mulheres, negros, índios e trabalhadores que se abraçarão na defesa da democracia e na memória de quem nunca se abateu e deixou legado de força e brilho. O ano de 2018 irá inaugurar um ciclo de poder trágico, decerto. Mas será lembrado pelas próximas gerações por causa do heroísmo da resistência. Que cada um opte por lado e aliados. É isso que estará nos livros de história do amanhã.