George Bernard Shaw (1856-1950) viveu, em seu entremeio, quase metade de dois séculos. Em sua longa e fecunda existência, assistiu a guerras e revoluções, filiou-se a ideias que carregou até o fim, singularizando-as e as enriquecendo, e deixou um legado talentoso e criativo nas artes da palavra. Foi um irlandês destacado, um dramaturgo ímpar. Sua complexidade o tornava, a um só tempo, socialista e exageradamente antissocial, democrata e meio autoritário. Dessa genuína, produtiva e humana ambiguidade, vale recordar um de seus escritos mais curiosos e hilariantes, "Socialismo para milionários", um panfleto satírico redigido em 1901.

Por que, afinal de contas, ter tanto dinheiro se o que se pode fazer com ele não é nada diferente daquilo que fazem as massas empobrecidas? Shaw propõe uma espécie de manual de conduta para milionários, lamentando, com ironia vivaz, que o mundo moderno só se oferecia de fato às multidões. A mais excluída das minorias, os milionários, sequer podia gastar seu dinheiro em paz, haja vista que nada era pensado ou feito para ela. Que graça teria o luxo num mundo cercado pelo lixo?

Algumas boas medidas seriam a base de uma vida mais feliz entre milionários: não guardar dinheiro (poupar para quê?), não acumular propriedades (deixá-las para a cobiça e a desapropriação?) e, acima de tudo, desenvolver gosto pelo trabalho. Não há razão para explorar os outros: a dignidade da atividade laboral é intransferível. Os milionários, sendo poucos, deveriam socializar suas trajetórias e viver em comunidade. Só assim poderiam fugir à solidão que o excesso de riqueza lhes facultava.

Um olhar atento aos mais jovens, os herdeiros, é providencial. É preciso ensinar-lhes a não dispartir recursos financeiros em caridade. A filantropia dirige-se aos pobres, e os pobres são um mero instrumento para atenuação do peso da consciência dos ricos. Shaw aconselha: não cair na armadilha de doações; o correto é investir naquilo que pode, efetivamente, render ideias para viver bem com (todo) o dinheiro que se tem.

Recolher impostos é outra das injustiças que se praticam contra os ricos. Inflar cofres públicos para quê? Para que existam políticas de distribuição de renda, promoção do bem comum, da saúde e da educação dos pobres? Em "Socialismo para milionários" está implícita a convocação para que todos os endinheirados do mundo se unam, criem sua ideologia hedonista e conquistem, enfim, o direito de usurar com liberdade. É urgente que tudo seja entregue ao prazer da gastança. Nada de esmolas, nada de doações a museus, igrejas ou atividades burguesas de auxílio à miséria. O dinheiro deve ser alvo exclusivo do prazer, da fabricação de cidadãos modernos, urbaníssimos, de visão industrial da vida - seja lá o que isso queira dizer.

Bernard Shaw, nos momentos em que suspende o humor cáustico contra os milionários, insiste que a pobreza não deve ser preocupação dos ricos, e sim de toda a organização social. Que não é de esmolas que deve viver um sujeito, mas de direitos. A escola ou o hospital não pode ser benevolência: tem de ser efetivação de uma concepção democrática de poder. Shaw era um humanista radical.

Em "Socialismo para milionários", Bernard Shaw quer libertar os ricos da opressão das massas, as quais os impedem de gastar seus quase infinitos recursos num mundo feito para a mediocridade do "homem simples". Para tanto, os ricos precisam se emancipar, cultural e socialmente, definindo para si um regime coletivista próprio. Um milionário não pode ser tão poderoso quanto todos reunidos. Olhando para o ridículo da história, Shaw se faz profético. O socialismo até hoje existente é o da comunhão dos ricos, ontem e hoje. E amanhã?