Imagem ilustrativa da imagem Os netos dos netos de Keynes
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É bastante conhecido o pequeno ensaio de John Maynard Keynes (1883-1946), redigido em 1930, intitulado "Possibilidades econômicas para os nossos netos". Trata-se de um texto que se eleva sobre as ruínas da Grande Depressão, os martírios da Primeira Guerra (e o pavor diante da iminência de sua continuidade) e das aspirações revolucionárias e reacionárias que animavam a vida política no início do século 20. Retornar a esse escrito de Keynes é uma forma de lançar luz sobre os dramas da existência neste novo milênio, desassistido no que se refere a ideias de envergadura para o florescer do espírito humano e propostas efetivas de encaminhamento da vida em sociedade.

Keynes, economista britânico, foi um pensador que não abria mão da filosofia moral como base da reflexão sobre temas materiais e pragmáticos. Antes de cotejar cifras ou aventar chances de sucesso para determinados planejamentos macroeconômicos, perguntava-se sobre o destino dessas ações na felicidade real das pessoas. Importava-lhe, portanto, a questão humana, não a engenharia dos números ou os gráficos de desempenho financeiro. As diatribes econômicas e as sinuosidades estatísticas deveriam, necessariamente, responder às demandas por bem-estar dos indivíduos e suas coletividades.

Keynes era defensor convicto da felicidade humana como objeto de investigação filosófica e como alvo preferencial da política, tanto nos desdobramentos da sociedade civil quanto nas articulações entre Estado e estruturas de poder. Ele acreditava que a crise econômica de seu tempo iria passar e daria vez ao dobrar e redobrar do padrão médio de vida nos países desenvolvidos, filiados às democracias liberais, consortes da acumulação de capitais, do empuxo técnico-científico e das inovações no campo das ideias e práticas desde meados do século 18. O progresso traria a libertação do ser humano em relação ao fardo excessivo do trabalho e lograria "tempo livre". No futuro, apostava Keynes, seus netos poderiam dedicar a vida a valores que não fossem, primordialmente, os de cunho material. Duas ou três gerações após Keynes a humanidade estaria livre dos problemas econômicos.

Emprego e renda seriam universalizados. A angústia financeira teria fim. A incerteza em relação ao amanhã deixaria de ser um fantasma. A competição desenfreada seria uma triste imagem de mundos perdidos, quase bárbaros, que as democracias do futuro transformariam em lembranças imemoriais. Estaria extinta, enfim, a patológica idolatria ao dinheiro, e a experiência da vida se fartaria do amor, das artes, da admiração pela natureza e da cultura como busca pela perfectibilidade.

Habitam o mundo, hoje, os netos dos netos de Keynes. De fato, houve crescimento exponencial das técnicas e da fabricação de produtos sofisticadíssimos, que, para desespero dos humanistas sobreviventes, aprisionam as pessoas em redes de ódio, mentira e inveja. A ciência alcançou o espaço, curou enfermidades milenares, organizou cidades e países inteiros, mas, ainda assim, é atacada por terraplanistas e por uma obediência cega ao modelo de organização social capitalista, o qual, a despeito das boas intenções de Keynes, não livrou a humanidade da paixão doentia pelo dinheiro nem superou a hipercompetitividade que corrói laços de solidariedade e destrói o meio ambiente.

Os hoje avós aos quais se dirigiam as otimistas previsões de Keynes lidam com políticas sistemáticas de destruição de direitos. O mundo que traria o tempo para ser usado em razão do melhor do que há em cada humano escraviza pela servidão que oprime rebeliões; mercantiliza corpos, ideias e tudo à volta; vale-se das inovações tecnológicas para obstruir a democracia (que não consegue superar os limites do paralisante liberalismo) e favorecer novas ondas de autoritarismo. Os netos dos netos de quem escreveu em 1930 podem jamais ter "tempo livre", desumanizados por dilemas da mera sobrevivência e ameaçados de perder o direito à aposentadoria. Keynes previu menos trabalho, mais felicidade. A depender dos netos de seus netos que estão no poder, não haverá nem trabalho, nem felicidade.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - [email protected]