Imagem ilustrativa da imagem O irracionalismo
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Copérnico, Kepler e Galileu, campeões das modernas revoluções científicas, ficariam perplexos diante do irracionalismo contemporâneo. Em vez do apego à racionalidade capaz de comparar e clarear os fenômenos da natureza e da sociedade, muitos indivíduos ainda preferem interpretações categóricas, alheias a questionamentos e tensões. São inquisidores em busca de alívio para seu desespero de viver num mundo que muda a todo instante e provoca a inteligência humana.

O irracionalismo propõe revitalizar a retórica ociosa de tempos ultrapassados. De maneira geral, os irracionalistas desprezam tanto o argumento racional quanto o conhecimento sensível. Desfazem-se, a um só tempo, da ciência, das artes e da vida cultural dos povos. No limite, o irracionalismo crê que leis e normas morais têm poder de decidir à revelia das práticas sociais e evidências históricas.

Um caso emblemático dessa "desconexão" entre o desejado e o efetivo foi a fala de um senador de direita, na Argentina, quando sua casa parlamentar derrubou a proposição do aborto livre. Ele afirmou que as ações abortivas seriam eliminadas no seu país. A paranoia desse tipo de discurso descarta a realidade e suas complexas determinações. As clínicas de aborto para mulheres ricas continuarão operando longe dos olhos da moralidade conservadora. E as mulheres pobres, que já sofrem com o congelamento de gastos em políticas públicas de saúde e bem-estar (proposto pelos partidos aliados ao senador hipócrita), insistirão no aborto inseguro e irão carregar sequelas ou morrer. O irracionalismo consiste em fingir que nada disso é real, desqualificando a complexidade dos fenômenos sociais e seus vínculos com humanos de carne, osso e espírito.

O caráter deletério do irracionalismo, para amenizar a fragilidade de seus sentidos diante do tempo histórico, vale-se de lugares-comuns que intuem cutucar emoções e tabus (eles mesmos, via de regra, irracionais). Os defensores da "vida" costumam apoiar a ordem social policialesca e até a pena de morte. Consagram, sem constrangimento, medidas autoritárias para combater os males de uma sociedade herdeira do... autoritarismo. Por isso, falam de uma vida abstrata, rejeitando as disposições reais da existência, o lugar no mundo do trabalho, na cidade, nas escalas de acesso a bens materiais e simbólicos etc.

O horror dos cavaleiros dos bons costumes à realidade é tão maciço que nem a democracia escapa: pregam o cerceamento de ideias, comemoram prisões arbitrárias, endossam a judicialização da política, aceitam os privilégios dos eternos senhores da Casa Grande e amaldiçoam os subalternos, culpando-os pelas desgraças do mundo.

A mais recente investida do irracionalismo, no Brasil, é bajular filhotes da ditadura civil-militar, elevando-os à condição de mito redentor da nação. Quer-se um futuro preso ao passado, sem o som das ruas nem novidades. Nada é mais ameaçador, para os irracionalistas, do que um mundo em que a igualdade seja uma aspiração. Afinal, eles vivem (e muito bem) das desigualdades que creditam à "natureza humana".

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL
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