Imagem ilustrativa da imagem O devir-negro do mundo
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Colonizar é estabelecer fronteiras em territórios alheios, dominar tudo que lá esteja, seja coisa, seja gente (normalmente, transformando as gentes em coisas). O ato em si da colonização é impor uma visão de mundo, posicionar-se no limite de todas as possibilidades de evolução. Aquele que coloniza nunca dialoga, uma vez que seu objetivo é subjugar o colonizado, deter suas manifestações políticas e espirituais e aniquilar suas estratégias de resistência. Uma colônia, enfim, é o lugar em que intuitos de eterna opressão são semeados.

Nos confins do mundo (leia-se: América Latina, África e Ásia), o colonizador europeu decretou que não havia cultura. Desde que chegou, o homem branco vem dizendo que as formas de vida têm de ser as suas. Só em seus territórios metropolitanos é que existem os bons pensamentos, as corretas interpretações da história, das relações sociais, das nuances da psiquê. Na religião, seu deus é o único que conhece a verdade e pode redimir o pecado nato da podridão humana - tanto mais podre quanto maior a distância em relação às catedrais do Velho Mundo. No campo das artes e da ciência, fora da Europa (e mais tarde também de seus "clones" além-mar), tudo é selvageria e degeneração. Um planeta partido entre "os de cima" e "os de baixo" não é, pois, fato novo.

No Brasil, a estrutura de condutas e predisposições ainda bebe nas águas da fonte colonizadora. Por aqui, junto à escravidão e ao permanente genocídio de índios e negros, ignora-se a riqueza das experiências organizativas, econômicas e culturais do povo. É como se, antes da chegada do colonizador, nada nesta imensidão houvesse. Pior: a insistência em dotar o colonizador de razão em tudo que fez (ou diz ter feito) apaga da memória histórica as genuínas contribuições que africanos de diversas regiões do continente a leste trouxeram, mantiveram e seguem praticando. Há muito mais de negros e indígenas nos brasileiros do que palavras assimiladas por dicionários ou grafadas em placas de rua ou mapas geográficos.

O cientista social camaronês Achille Mbembe, autor de "Crítica da Razão Negra", obra publicada no Brasil pela "n-1 edições", ao refletir sobre os novos modos de colonização na contemporaneidade, fala num "devir-negro do mundo". A expressão é tão potente quanto oportuna. Mbembe parte de um pressuposto perturbador: como o Ocidente tem coragem de se dizer palco do "humanismo" não podendo refutar que construiu boa parte de sua história sobre o corpo escravo do negro? Contra as "luzes" do "progresso", o negro permaneceu antítese, símbolo de atraso, incivilidade. De que modo, então, declarar-se arauto da "alta cultura", produtor de "gênios da raça", criador da "beleza", se varreu para debaixo do tapete os horrores da colonização, que nega a ética, a estética, a ciência e a ficção dos negros?

Em tempos de fortalecimento da razão neoliberal (que reforça a mercantilização de corpos e almas para o crescimento exponencial do capital especulativo e da desumana cultura utilitarista), Mbembe vai além: o subalternos são os negros, sim, mas também os descendentes da ancestralidade de cada continente, as mulheres, os jovens, as comunidades LGBT, os trabalhadores assalariados e, mais do que nunca - em assustador momento de anti-intelectualismo -, todos que pensam e lutam por um mundo diferente e melhor.

A leitura da obra de Achille Mbembe traz consigo um testemunho de que a cultura não é só a do colonizador. Na "periferia" do capitalismo se produz beleza e se dissemina inteligência. Acima de tudo, nos rincões da Terra, a resistência não cessa.