Na tradição clássica da economia política, o trabalho é fonte de toda a riqueza humana. A construção do mundo à sua imagem e semelhança torna o homo faber um ser destacado na natureza: dele depende não apenas de que viverão os seres vivos, mas, principalmente, o rumo da história e o modo como irão se organizar as experiências coletivas.

Imagem ilustrativa da imagem O dever do prazer
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Ocorre que, numa época hegemonizada pelos valores burgueses, o mercado se converteu em centro da vida social. Capturados por um tipo de racionalidade que transforma tudo e todos em empresa - cuja lógica é atingir metas, obter lucro e estabelecer uma hipercompetitividade desenfreada -, os indivíduos se caracterizam pela distância uns em relação aos outros, pela desigualdade no acesso a bens materiais e simbólicos e, de modo contumaz, por hostilidades múltiplas diante da diversidade das formas de vida. O mercado não tece redes de solidariedade entre os seres. Bem ao contrário, produz o esgarçamento das partilhas e do júbilo de pertencimento a algo maior, o gênero humano.

Deixando de lado as controvertidas discussões sobre a necessidade de superação da ordem capitalista e, portanto, a edificação de uma sociedade efetivamente livre, igualitária e fraterna, a questão crucial é criar intersecções entre as dinâmicas do dever e do prazer. Espíritos revolucionários só virão à luz do tempo histórico no momento em que as mais simples e rotineiras tarefas puderem ser um ponto de luz no desejo de fazer da vida algo que valha mesmo a pena. Assim, embora os termos objetivos da realidade quase sempre deponham contra um ideal mais generoso de felicidade, é urgente fazer dos dias matéria-prima da eternidade a que se almeja, no Céu ou na Terra, a depender da visão de mundo que encara o atual estado de coisas como sendo, no mínimo, insuportável.

A insubstituível grande fonte da riqueza humana, o trabalho, é de fato um dever. A sobrevivência física lhe é tributária. Mais do que isso: o trabalho é também uma exigência para a psiquê saudável, de elevada autoestima. Perceber-se útil aos processos de socialização, ter aonde ir e de onde voltar, tudo isso é sintoma do trabalho. Sua riqueza, portanto, ultrapassa a questão material e penetra o mundo da vida, os sentimentos mais profundos de cada ser. Nesses termos, se puder, além de dever, ser realizado com prazer, tornar-se-á ferramenta de mudança social. Da mínima parte para o todo, e do todo para as mínimas partes, como movimento dialético de autorrealização. Fazer bem aquilo de que se gosta; criar e recriar possibilidades; definir um vasto campo de interlocução com saberes distintos e complementares; ampliar horizontes e optar pelo futuro como destino temporal: essas ecologias humanas podem advir do trabalho, não do emprego que garante mísero pão e ardiloso circo. Contra a desumanização daquilo que se impõe como lógica inevitável, o trabalho com vistas a um outro mundo (necessário e possível) começa no modo como é concebido, ou seja, como campo de exercício da liberdade e da comunhão.

É sabido que inúmeros postos de trabalho embrutecem o ser humano, retirando-lhe vontade e serenidade. E é também conhecida a intenção por trás disso: impedir o florescimento de um modelo de organização da vida social que exija de cada um de acordo com suas possibilidades e a cada um devolva segundo suas necessidades. A máxima é antiga e anda em desuso. Sua essência, contudo, permanece vital: o trabalho como fonte de prazer e comunhão entre sujeitos que se vejam como iguais, artífices de uma mesma e bonita realidade.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - [email protected]