Toda vez que alguém decide se entregar a um desafio, prometendo não medir esforços, diz que o fará "de corpo e alma". Trata-se de empenho ilimitado, em que os indivíduos mergulham da cabeça aos pés e, também, com toda a sua energia espiritual. A matéria e as ideias irão, portanto, trabalhar juntas, definindo a síntese perfeita do humano.

Não é à toa que a expressão apareça nos momentos de desejo por conquista e autossuperação. Em todas as partes e épocas, alma e corpo compõem a dupla dimensão daquilo que sempre foi alvo das mais variadas manifestações do poder. Dominar a alma é circunscrever os espaços de difusão das ideias. Predefinir a estética e o movimento dos corpos é impor uma estrutura de controle da criatividade individual e da ação coletiva.

A emancipação do corpo e da alma é a mais preciosa matéria-prima da liberdade humana. Na luta contra o poder que os aprisiona, homens e mulheres se deparam com forças gigantescas, associadas, na história, a instituições milenares e de profunda influência sobre as formas de vida. Monarcas e sacerdotes sempre se aliaram para dividir as benesses de ter para si o corpo (a força de trabalho) e a alma (as ideias e crenças) de todos sob seu império.

A cultura age sobre a alma e o corpo a um só tempo. Se branco ou preto, grande ou pequeno, arredondado ou curvilíneo, o corpo ideal terá as prerrogativas da vida cultural que o determina. É nesse sentido que se pode perceber, entre outras coisas, aquilo que é tido como belo ou feio, sagrado ou profano. O corpo, nesse sentido, é resultado político do modo como se organiza a vivência comum e se distribuem os diferentes capitais que conferem poder e status aos indivíduos, grupos e fragmentos de classe social. O corpo, portanto, é objeto permanente de litígio – nunca cessa a disputa ideológica sobre quais sentidos oferecer às suas formas e movimentos.

A moral que reveste determinados grupos religiosos, por exemplo, é um dos agentes dessa disputa pelo sentido atribuído aos corpos. Seriam os corpos uma dimensão potencialmente pecaminosa, que precisam estar recobertos e postos a uma distância segura das almas mais puras. Há nessa percepção do corpo uma esfera política e um fundo ideológico, que se justificam por uma concepção dita natural e transcendente. Os corpos necessitam, pois, ser disciplinados, confinados em ambientes seguros, nos quais não consigam provocar o poder que controla nem a moral que se ressente.

A arte é um campo de luta contra a subjugação do corpo. De quantos nus é feita a história da pintura de telas? Qual o papel do corpo rebelado na fotografia artística? Que tipo de cinismo desejam questionar aqueles que libertam seus corpos das amarras da crendice e da moralização da vida sexual? Por que o corpo feminino expõe tanto as feridas criadas pela misoginia e pela violenta dominação masculina?

Ao ocupar o espaço público, politizando a moral social e as regras de vida dos hipócritas, o corpo está se libertando da disciplina a que historicamente foi condenado pelas instituições sociais de controle. O corpo quer dar voz à alma que, sob domínio do medo, o sufoca. A vergonha, nesses casos, não é a do corpo livre – é a alheia.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]