Do grego que une as expressões "cérebro" e "cortar' surge "lobotomia". Trata-se de um tipo de intervenção cirúrgica que pretendia, num passado não muito remoto, combater a esquizofrenia e outros distúrbios mentais. Há registros históricos de que o expediente foi levado a cabo por juntas médicas a serviço de ditaduras civis-militares, no intuito de fazer lavagem cerebral em ativistas políticos, intelectuais e artistas que se insurgiam contra as autoridades ilegítimas. O que se praticava era a materialização da ideia de força contra a força das ideias.

Imagem ilustrativa da imagem Lobotomia
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Dizia-se que "Z" havia sofrido lobotomia nos porões da ditadura. Em 1968, após uma reunião de estudantes num sítio no interior de São Paulo, "Z" sumira. Décadas depois, conhecidos afirmaram que ele estava morando na região sul, numa área de cultivo de uvas, com tios e primos. E era, de fato, outra pessoa.

"Z" e "X" eram muito amigos desde a infância. Cresceram na mesma rua, estudaram na escola do bairro e estavam cursando a faculdade juntos. "Z" era um sujeito inteligente, sensível, capaz de análises ricas e profundas da conjuntura social. Todos se encantavam diante de "Z". E "X" se orgulhava do amigo. No fundo, "X" se sentia seguro ao lado de "Z", confiante, otimista. A prisão de "Z" e "X", no congresso estudantil em fins da década de 1960, separou suas trajetórias. Voltariam a se ver 50 anos depois, num casual encontro na rodoviária de uma cidade paranaense.

Apesar das humilhações no DOI-CODI e das sessões de tortura por que passou, "X" sobreviveu. Seguindo o mapa dos sonhos do amigo "Z", formou-se em Ciências Sociais e fez carreira acadêmica laureada; publicou dezenas de livros, viajou pelo mundo em defesa da democracia, da liberdade e dos direitos humanos. Sem exageros, tornou-se um dos mais prestigiados intelectuais da esquerda brasileira. O amigo "Z" não teve semelhante sorte: a lavagem cerebral que sofrera apagou sua história e o conduziu por um mundo de sombras e horrores. Confinado a casa, passava os dias a ver TV, navegar pela internet e rabiscar estranhas palavras de ordem num caderninho que levava a tiracolo.

- "Z", meu irmão, que bom ver você! - disse "X", extasiado, enquanto abraçava o velho amigo perto de um guichê de vendas de passagens rodoviárias.

Amparado pelos tios cabisbaixos, "Z" não reconheceu "X". Era o início de um final de semana de eleições gerais. O baixo nível do debate público, a presença de fantasmas da ditadura na campanha política, o fim do pacto de elites firmado na Nova República, tudo havia impulsionado a extrema-direita, deslocando-a para cima e lhe dando, no imaginário popular, o status de tendência "outsider".

O pensamento intolerante e violento se reinventava na prática, prometendo o novo em tempos de desamparo e profunda despolitização. As eleições eram o futuro ameaçando repetir o passado.

"Z" mostrou seu caderninho de rascunhos a "X". Na capa, a foto de um candidato também elevado a condição de "outsider", que gritava ser "contra tudo que aí está." Uma falácia. Era patriarca de um clã dos mais tradicionais, beneficiário dos privilégios de tudo como aí está. Despreparado, destemperado e tecnicamente trágico para pensar a condução de um país tão complexo, o candidato da ditadura posava de bom moço, "gente de bem". Sua candidatura escandalizava o mundo, afrontava os espíritos democráticos, nublava o horizonte nacional. Era como se só o Brasil nada além do ódio conseguisse sentir.

Os tios de "Z" desviaram o olhar, tristes, sem saber o que dizer. "X" percebeu que era melhor manter o silêncio e se despedir. "Z" havia se transformado num arremedo de si mesmo. O jovem inteligente que encantava a sua geração com lucidez e pertinência estava perdido em algum porão imundo dos anos de chumbo.

- Adeus, "Z" - disse, em lágrimas, "X".

- Mito, mito, mito, mito... - gritou "Z".

O ônibus de "X" partiu. Seu coração também. A luta era dura e desigual, mas precisava continuar, mesmo aos trancos e barrancos.