Imagem ilustrativa da imagem Henfil e o Anjo
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Henrique de Souza Filho, o Henfil, morreu em 1988, pouco antes de completar 44 anos de idade. Estava em seu momento mais fecundo, escrevendo, desenhando, pensando o Brasil. Suas charges e personagens dos quadrinhos - como a delicada Graúna e os impagáveis "fradins" Baixim e Cumprido (é com "u", sim) - pertenciam ao universo mais significativo e inteligente da cultura popular.

Henfil, hemofílico, morreu em decorrência da Aids, contraída durante uma das inúmeras sessões de transfusão sanguínea a que se submeteu em vida. Ele e seus irmãos Herbert (o sociólogo Betinho) e Chico Mário (um exímio violonista) foram vítimas de um país de prioridades estranhas, entre as quais raramente está a preocupação ética e pública com a saúde e a educação.

Desde 1988, um ano antes da primeira eleição direta para presidente da República em 30 anos, Henfil acompanha a política brasileira lá do Céu. Durante a ditadura civil-militar, lutou pelas liberdades democráticas e se lançou de cabeça e alma nas campanhas da Anistia, em 1979, e das Diretas Já, em 1984. Viu com pouco entusiasmo a chegada da Nova República, mas nunca esmoreceu. Seguiu em frente, pintando o sete, fazendo o brasileiro atento rir e chorar, pensar e agir. Henfil, para dizer o mínimo, faz da saudade um sentimento cortante, insuperável.

Esta semana, em uma de suas caminhadas matinais pelas nuvens, Henfil encontrou um anjo que havia passado os últimos meses observando o Brasil e estava de volta ao Paraíso. Os dois eram bons amigos. Bebiam boa cerveja celestial nos fins de semana e gostavam de conversar, sempre de forma bem-humorada, sobre o que os humanos andavam articulando para conquistar o direito à eternidade. Dessa vez, contudo, as palavras produziram rugas na testa e aperto no peito:

- Ah, Henfil, as coisas andam esquisitas demais no Brasil...

- Eu soube, Anjo, eu soube. Desde domingo não se fala outra coisa por aqui. Confesso que ainda não consegui digerir a "novidade". Décadas de lutas, sofrimento... Pessoalmente, vi amigos perseguidos e escorraçados do país; muitos foram presos, desapareceram... Jamais imaginei que poderia assistir a tudo isso novamente, mesmo do Céu. Pior é não poder desenhar, escrever uma das minhas "Cartas à Mãe" para driblar e fazer glosa da censura estúpida dessa gente.

- Pois é, meu amigo. Na campanha, artistas, escritores e intelectuais ponderaram sobre a volta dos tempos sombrios e pediram que votassem no outro candidato, um professor democrata. Mas havia mais em jogo. Um protofascismo típico de quem prefere a força ao diálogo, o quintal de casa às praias do mundo e palhaçadas preconceituosas a um discurso contra o qual haja urgência de argumentar com inteligência invadiu as entranhas da sociedade brasileira e definiu o ódio como política. Eu que passei todo esse tempo lá embaixo, Henfil, posso lhe dizer que o medo governa os seres humanos, não só no Brasil. E, por isso, eles têm caído na armadilha da reatividade e do ressentimento. Emparedada pela atual versão superautoritária do neoliberalismo, a democracia converteu-se numa alegoria para ficcionistas de um país de imenso passado pela frente, como diz Millôr, nosso companheiro de cervejas celestiais.

- Faz sentido tanta apreensão, Anjo. Mas é preciso lembrar às pessoas que a resistência é um dever. A política é, também, a expressão mais humanizada da música, do cinema, da literatura, da ciência, da vida. Elas não podem esquecer que nunca estarão sozinhas. A memória dos lutadores - homens e mulheres, indígenas, negros, camponeses e operários - as acompanhará. No fim e a cada passo, Anjo, nós venceremos.

- Por que tem tanta esperança, Henfil?

- Porque sei que estamos do lado certo, meu caro Anjo!

Os amigos celestiais se abraçaram e resolveram fazer daquele dia comum um momento dominical: convocaram a rapaziada das velhas pelejas mundanas e foram se abraçar na imensa nuvem de paz que protege o Brasil. Sorriram. A história estava apenas recomeçando.