Espelho, espelho meu
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 26 de julho de 2017
Na década de 1980, nas páginas da revista "Chiclete com Banana", o cartunista Angeli apresentou o emblemático Walter Ego, um personagem que amava a si mesmo acima de tudo e todos. Conhecido como "o mais Walter dos Walters", autoproclamava-se "o maioral", destacando-se nas mais inusitadas circunstâncias. Inexistia um terreno em que Walter Ego não acreditasse sobressair: era o melhor cantor, escritor e desenhista; o verdadeiro galã, gênio e insuperável ser. Diante de um espelho (seu mais fiel amigo e escudeiro), Walter Ego penteava seu topete e conversava exaustivamente consigo mesmo, rasgando elogios e concluindo ser o suprassumo da criação.
Sempre em busca de aparecer e demonstrar seus "dons", Walter Ego se irritava com aqueles que não enxergavam seus variados talentos. Sua autoconfiança era tanta que, mais de uma vez, perguntou-se por que a TV não o filmava tomando banho, fazendo a barba, preparando um café ou lendo o jornal. Julgava ser brilhante até quando não estava fazendo nada.
A palavra ego, em latim, significa "eu" e designa, noutras etimologias, a ênfase na primeira pessoa do singular. É bem provável que Angeli tenha desejado fazer humor com essa expressão. Afinal, o ego é aquilo que se quer manter sob controle, para evitar situações constrangedoras ou letais. Sigmund Freud, por exemplo, assentiu que o ego é o famoso "princípio da realidade", um apelo do "eu" a um equilíbrio entre a animalidade dos instintos e a força impositiva da sociabilidade. Com o ego desajustado e, portanto, vulneráveis diante de suas pulsões ilimitadas rumo ao prazer, os indivíduos correm o risco de não sobreviver coletivamente. Autocontrole, então, é a palavra-chave.
No mundo contemporâneo, o ego encontra inspiração para desafiar a sensatez. A hipercompetividade mercantil entre os indivíduos, o consumismo como receita exclusiva de felicidade, o sumiço das fronteiras entre o público e o privado, o culto à autoimagem e a despolitização generalizada da vida comum, entre outros fatores, empurram o ego para uma situação-limite: a de obrigar-se a aparecer a todo custo, ostentando a miséria de vida que o suporta e revelando a tristeza que o incendeia e ameaça transformá-lo em cinzas.
Embora seja monitorado pela razão, o ego tem dimensões insondáveis, em cujos labirintos brotam paixões irreconhecíveis. Essa manifestação "inconsciente" do ego pode ter raízes em experiências traumáticas de fracasso, ressentimento e dor pela admissão de impotência e inabilidade. Nesse sentido, indivíduos, quando incham o ego para aparecer, desnudam sua abissal fragilidade e acabam entregando um pouco da realidade que os forjaram uma realidade, vale frisar, na qual se sentem torturados por ter de conviver com eles mesmos.
Todos conhecem algum Walter Ego. Eles existem aos montes e estão espalhados pelo mundo. O intuito deles é receber elogios. Quando não conseguem, fazem autoelogio pulando em trampolim alheio. Walter Ego é um personagem real, que pode ser encontrado à esquina, sempre em busca de um holofote, uma chuva de confetes ou uma polêmica gratuita. Estar em evidência é o ar de que ele necessita para sobreviver. Apenas sobreviver.
Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - [email protected]