Início de ano é tempo de renovar compromissos. É momento mais do que oportuno para definir o que fica na vida e o que dela precisa sair. O exercício é válido para as formas de convivência nos espaços da família, do trabalho, dos estudos, da cultura e da espiritualidade. Embora muita gente faça promessas e jure de pés juntos que irá parar de beber ou fumar, que passará mais tempo com os filhos, que deixará de lado o celular, que comprará livros, que plantará uma árvore, o fato é que quase tudo acaba ficando pelo caminho, no campo vasto das intenções. O diagnóstico do imbróglio não é difícil: há um abismo entre o mundo ideal e a realidade que cerca e determina a experiência humana comum.
Atravessa-se o cotidiano tendo como referência central a ideia de que tudo é possível, basta querer. Os dias se passam e as soluções garantem que estão no repertório de autoajuda que cada um carrega a tiracolo. Uns depositam essa crença ingênua em programas de TV; outros a depositam nos discursos de líderes políticos ou religiosos; há ainda quem imagine ser a internet o baú de ouro da humanidade, em que segredos e milagres se encontram à frente de algum "hiperlink". No fim das contas, existem inúmeras versões do "manual prático para a felicidade infinita", segundo o grau de vulnerabilidade das consciências individuais e a fragilidade da dimensão coletiva da existência. A solidão que engana e mascara o egoísmo de cada ser humano é também o elemento corrosivo da verdade.
Pouca coisa é mais desprezada do que a realidade. Ela intimida e costuma jogar baldes de água fria em delírios requentados por ideários de velhas flamas. O medo da realidade provoca o desvio de rota das ideias. No lugar da convicção histórica de que só a luta muda o mundo, surge a ilusão da resignação ou, muito pior, da transferência de poder: alguém fará o que tem de ser feito, alguém dirá o que tem de ser dito; alguém abrirá o caminho a ser percorrido. Não raro, essa ilusão se frustra e desaba em dor, retrocesso e violência. O preço mais alto a pagar fica sempre para as gerações futuras, que invariavelmente recebem o medo como herança.
Os indícios do que a ausência de coragem provoca são inesgotáveis, apesar de permanecerem invisíveis a olho nu. "Mitos" retornam ao espaço público, que deixa de ser ocupado por gente de carne, osso e alma; pirotecnias substituem argumentos racionais, e a possibilidade de um diálogo extenso entre cidadãos avessos ao absurdo deixa de pautar a política comunitária. No ápice dos dissabores, resplandece a imagem daqueles minguados sujeitos que se alimentam da mentira que difundem, seja em jornais e redes sociais, seja nos espaços físicos que frequentam. No epicentro das palavras, a crença no mercado "ideal" completamente descolado da vida "real", onde gente de todo tipo sobrevive à custa de trabalho mal remunerado, assédio generalizado, preconceito étnico, de gênero ou comportamental mitigado em orações falsas e ódios velados. Umberto Eco chamou essa permanência da negação do outro de "ur-fascismo", ou seja, fascismo eterno.
Vale, enfim, o ideal. A realidade, caso atrapalhe, deve ser extinta. Assim, elege-se o mercado o herói do mundo, impondo que se propague por todos os meios a centralidade do "desenvolvimento econômico" (para quem mesmo?). Ao mesmo tempo, para não esquecer que é de absurdos que a crise histórica se veste, torna-se vital afirmar que o "socialismo" está sendo vencido, esquecendo-se de avisar que o suposto inimigo jamais deu as caras no campo de batalha. Um bom fantasma para dilatar o medo generalizado ajuda bastante na criação de um clima de loucura que justifique os horrores à manga.