Imagem ilustrativa da imagem As ideias fora do lugar
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É de 1977 "Ao vencedor as batatas", do crítico literário Roberto Schwarz. Se o livro é importante para uma compreensão mais abrangente da formação sociocultural brasileira, graças aos seus minuciosos estudos da geração literária de fins do século 19, ele é clássico por seu ensaio de abertura, "As ideias fora do lugar".

Às vésperas da república, o Brasil ainda era um estranho território agrário e dividido em latifúndios, alicerçado sobre o trabalho escravo e as imposições do mercado externo. Produzia café, açúcar e borracha para manter a todo vapor a indústria europeia. A borracha era matéria-prima para os objetos de consumo ascendente; o açúcar e o café davam alguma energia e mantinham acordados os operários em suas exaustivas jornadas de trabalho. A chancela de "nação independente" só fazia algum sentido se grafada entre robustas aspas.

A insistência da escravidão tornava todas as ideologias modernas impraticáveis em seus domínios. Como ser liberal num lugar em que não há liberdades individuais? Como falar em livre concorrência onde reinam todas as formas de concentração, da terra à renda, do juízo moral ao poder de decidir sobre detalhes e estruturas da vida nacional? Ao liberalismo impossível dos primeiros abolicionistas e republicanos seguiram-se inúmeras outras ideias fora do lugar. Daí o país ter sido (e permanecer sendo) uma grotesca comédia ideológica.

Ainda que impedidas do ponto de vista teórico, as ideias europeias se desenvolveram de modo muito particular no Brasil. Há no país um tipo de liberalismo que soube conviver com a escravidão e o latifúndio e, mais tarde, articulou-se política e economicamente dentro do Estado, comandando-o a ferro e fogo. O discurso antiestatal e modernoso foi obrigado a pedir bênçãos a uma convenção da qual o "favor" era elemento constituinte essencial.

A adaptação das ideias importadas da Europa, portanto, foi sutil e bastante dissimulada. Entre os poderosos (proprietários de terra, senhores de escravos e amigos do imperador) e a enorme massa de negros condenados ao trabalho compulsório, havia uma parcela de "sujeitos livres" (comerciantes, profissionais liberais, pequenos proprietários, intelectuais etc.) que, para ascender socialmente ou obter privilégios que os destacassem na multidão, contavam com favores pessoais sob permissão dos poderes instituídos, que, é claro, camuflavam tudo.

Acessos facilitados e licenciosidades compuseram moralmente os estratos intermediários da sociedade brasileira, que aprenderam a defender as ideias liberais, em tese, e a exercitar, na prática, extensas e profundas relações de favorecimento, não raro atrelado à violência desmedida contra os mais pobres e vulneráveis. Isso explica o ódio histórico que amplos setores das classes médias nacionais dirigem à diversidade dos que lutam por reconhecimento e justiça.

No lugar da regra, a exceção. Em vez do plausível, o favor. E entre aqueles que defendem a exceção e o favor costumam estar os bradadores do mérito e os antagonistas da igualdade social. A mais longeva herança nacional são as ideias fora do lugar.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - [email protected]